O último livro de José Saramago termina – ou não termina – sem terminar. Chama-se “Alabardas, Alabardas” e seu último trecho é este: “, Para lhe falar francamente, tudo me parece demasiado, eu aqui sentado, eu a procurar documentos no arquivo, eu a falar com o administrador-delegado da empresa, eu um simples chefe de faturação menor, sem ofício nem benefício, Ofício, tem, não se queixe, Nada que outra pessoa não pudesse fazer”. O raciocínio, ao que parece, ficou suspenso, sem ponto final, sem vírgula, sem ponto e vírgula, sem ponto continuando. Nada. A impressão que dá é que o autor se levantou para tomar um café, para atender à porta, para pegar um livro na estante, para fazer alguma tarefa doméstica ou necessidade fisiológica e não voltou mais.
Mas Saramago não voltou mais porque não pôde. A doença venceu a batalha e o levou, em 18 de junho de 2010. Levou o autor e deixou o livro pela metade, sem ponto final. O que se sabe dele está nas suas anotações, colhidas do seu computador pessoal, espalhadas em notas esparsas e datadas, que ele ia deixando, emendando fatos, ideias e ideais, amarrando tudo numa prosa, para quem a conhece e nela se reconhece, inconfundível. Como o final, que ele já deixara pronto: “O livro terminará com um sonoro ‘Vá à merda’, proferido por ela [Felícia]. Um remate exemplar”, nota de 16 de novembro de 2009. Essas e outras observações estão colhidas no texto-ensaio de Fernando Gómez Aguilera que, junto com mais dois, encerram o livro, tentando lhe dar alguma organicidade com o resto da produção saramaguiana.
Mas nem precisava. Para quem conhece a obra de José Saramago, o livro, mesmo pela metade, mesmo inconcluso, mesmo suspenso, mesmo sem ponto final, traz em si o extrato do que ele insistia em narrar, quase como um credo religioso. Nele está, como personagem-foco-protagonista-herói invertido, o homem atomizado, o funcionário (público ou privado) subalterno, esmagado por sistemas industriais, econômicos ou financeiros impiedosos – e suas rotinas. Lá está a crítica social, contundente, diluída em diálogos, narrativas ou conceitos abstratos embrenhados em análises ou situações – como o fato de o personagem central, Artur Paz Semedo, um burocrata subalterno das indústrias Belona S/A, fazedora de armas bélicas de pequeno e médio portes, ser submisso e bajulatório, e ter como único desejo tornar-se superior na hierarquia da organização, e nem tão superior assim… Lá estão os parágrafos longos, as entradas dialogais sem distinção, as ideações do narrador-onipotente-onipresente-onisciente, o narrador total. Lá está o contraponto para um protagonista alienado, a sua esposa (?), Felícia, uma ativista-pacifista radical, que o deixa por não concordar nem com seu emprego nem com sua subserviência. Lá está um Saramago preocupado com a ética, com o senso de humanidade que o mundo tem perdido, cada vez mais.
O último romance de Saramago é mais uma profissão de fé em tudo o que ele acreditava – e que levou milhares de pessoas a acreditar também. Foi-se o homem e ficou a obra; (in)conclusa.
Uma resposta
Um texto maravilhoso, Marcos Fábio, do inicio ao final.
Tenho dito!
T. Bom-Fim