quarta-feira, 30 de abril de 2025

CARIANI E A PRISÃO QUE NÃO VEIO: QUANDO A EXCEÇÃO DEVERIA SER A REGRA NO PROCESSO PENAL

Publicado em 27 de dezembro de 2023, às 9:31
Fonte: Paulo Thiago Fernandes Dias – Doutor em Direito (PPGD/UNISINOS). Mestre em Ciências Criminais (PPGCRIM/PUCRS). Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal (UGF). Bacharel em Direito (ICJ/UFPA). Advogado. Professor Universitário (UNICEUMA e UEMASUL). Pesquisador. Instagram: @paulothiagof
Criminal in handcuffs. Imagem: FreePik Premium.

Um dos assuntos mais comentados nos últimos dias foi o do suposto envolvimento do influencer Renato Cariani com o crime organizado, especialmente pela prática dos crimes de tráfico de drogas, associação para o tráfico de drogas e lavagem de dinheiro[i].

Em apertada síntese, e com base nas informações veiculadas pela mídia tradicional[ii], a investigação conduzida pela Polícia Federal, deflagrada em 2019, apura o possível uso da empresa Anidrol, da qual Cariani é sócio juntamente com Roseli Dorth, para o desvio de produtos químicos destinados à fabricação de drogas ilícitas (dentre elas, o crack), por meio da fraudação de notas fiscais.

Devidamente autorizada por decisão judicial, a Polícia Federal cumpriu mandados de busca e apreensão na sede da aludida empresa e na residência de Cariani. Foi, portanto, motivo suficiente para que toda ordem de memes se espalhasse pela internet, especialmente pelas redes sociais[iii], ferindo com força o direito fundamental à presunção de inocência.

Mas o objeto principal deste texto está noutro ponto envolvendo o caso Cariani. A despeito de representação formulada pela polícia e com a anuência do Ministério Público, o Poder Judiciário disse não para a decretação da prisão cautelar de Cariani (gênero do qual a prisão temporária é uma das espécies)[iv]. Por quê?

Essa pergunta é pertinente. Segundo dados do 14º ciclo do SISDEPEN (janeiro a junho de 2023), das 644.305 (seiscentas e quarenta e quatro mil, trezentas e cinco) pessoas presas em unidades prisionais no Brasil, 180.167 (cento e oitenta mil, cento e sessenta e sete) estão presas em caráter provisório[v]. Contando com presos provisórios e definitivos, a Lei de drogas é responsável pelo encarceramento de 193.001 (cento e noventa e três mil e uma pessoas), ou seja, por 28,29% da população carcerária brasileira[vi].

O Direito Processual Penal brasileiro lida com dois tipos de prisão, conforme o caráter definitivo ou não do decreto prisional, a prisão penal e a prisão cautelar. Por prisão penal, entende-se aquela decorrente do trânsito em julgado da condenação. Logo, trata-se de uma sanção imposta pela prática de uma infração penal punida com pena de prisão. O trânsito em julgado implica a impossibilidade de interposição de recurso capaz de modificar a condenação.

Quando se fala em prisão cautelar ou processual, está-se reportando ao tipo de detenção que não possui caráter de pena. Trata-se de uma medida imposta durante a fase pré-processual, processual e até mesmo recursal para garantir a lisura e a eficiência das investigações, ou até mesmo para evitar que o preso continue a praticar crimes, ou que comprometa uma futura aplicação de pena (em razão do comprovado risco de fuga). Resumindo: nesse grupo, não há uma decisão condenatória definitiva.

As prisões processuais se dividem em cautelares (temporária e preventiva) e pré-cautelares (prisão em flagrante)[vii], sendo que cada uma delas possui requisitos específicos para fins de decretação. As prisões cautelares só podem ser efetivadas se embasadas por decisões judiciais devidamente fundamentadas.       

Voltando ao caso de Cariani, noticiou-se na imprensa que o principal argumento para a representação por sua prisão temporária (espécie do gênero prisão cautelar) seria o da continuidade delitiva (pois, supostamente, o investigado seguiria praticando delitos, apesar das investigações).

Por conta da não decretação da prisão temporária de Cariani e demais envolvidos, muito se falou nas redes sociais que o Judiciário teria se valido do chamado dois pesos e duas medidas, já que boa parte da população carcerária provisória do país se deve à suposta prática de crimes listados na lei nº 11343/2006 (Lei de drogas), especialmente quando o investigado é pessoa pertencente a grupos vulneráveis (pretos, pardos, pobres e com baixa escolaridade).

Entretanto, ainda que não seja a regra na prática forense, a decisão tomada pelo Judiciário paulista no caso Cariani, de acordo com as informações relatadas pela mídia comercial (não tive acesso às decisões), foi acertada, à luz do Direito.

Aliás, tenho até dúvidas sobre o cabimento em si da prisão temporária, cujo principal objetivo é garantir a eficiência da investigação preliminar. Ora, não se tem notícias de que algum embaraço tenha sido criado contra a atuação da polícia pelos investigados. Demais disso, vale lembrar que o Supremo Tribunal Federal, em controle concentrado de constitucionalidade, definiu que a prisão temporária só pode ser decretada quando essas hipóteses estiverem presentes, em caráter cumulativo: a) necessidade, amparada em fatos concretos, da prisão para as investigações; b) existência de fundadas razões de autoria ou participação do indiciado nos crimes descritos no artigo 1°, inciso III, da Lei 7.960/1989; c) a representação ou o pedido de prisão estiver fundado em fatos recentes; d) a medida for compatível com a gravidade concreta do delito, as circunstâncias do fato e com as circunstância pessoais da pessoa investigada; e) demonstrada a insuficiência das medidas cautelares diversas da prisão[viii].

Além de ter realizado a busca e apreensão nos endereços dos envolvidos, a Polícia Federal também os ouviu. Qual seria o real sentido prático da prisão temporária solicitada que não o da inequívoca potencialização da espetacularização do caso?

O caso sob análise não reúne todas as condições exigidas pelo Supremo Tribunal Federal para a imposição da excepcional medida cautelar da prisão temporária. Dessa forma, diante do que se sabe pela imprensa, agiu bem o Poder Judiciário paulista. Que assim continue. E que a exceção se torne a regra um dia.


[i] Conforme noticiado pela mídia comercial: https://www.cartacapital.com.br/justica/influencer-renato-cariani-e-indiciado-por-trafico-de-drogas-e-outros-crimes/

[ii] Vide: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/12/18/renato-cariani-e-indiciado-por-associacao-para-trafico-de-drogas-lavagem-de-dinheiro-e-trafico-equiparado.ghtml

[iii] Fonte: https://www.metropoles.com/celebridades/apos-ser-alvo-da-pf-memes-de-cariani-inundam-a-internet-veja

[iv] Até o fechamento deste texto, também em sede recursal, o pedido de prisão dos investigados foi rejeitado pelo Poder Judiciário: https://www.band.uol.com.br/noticias/bora-brasil/ultimas/ministerio-publico-volta-a-pedir-prisao-do-influenciador-renato-cariani-16656426

[v] Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiYzZlNWQ2OGUtYmMyNi00ZGVkLTgwODgtYjVkMWI0ODhmOGUwIiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9&disablecdnExpiration=1703677247

[vi] Fonte: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiN2Q1ZmFmZWItNDNhMi00OTFjLTgyZGYtMjc1MmFiZDhmNGQ4IiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9

[vii] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Processo Penal e Execução Penal. Salvador: Editora Juspodivm, 2022, p. 928.

[viii] Fonte: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=481715&ori=1

3 respostas

  1. Ótimo artigo, Dr. Paulo Thiago.

    O texto alcança o grau da excelência, ao apresentar análise sociológica ponderada, embasamento teórico consistente e arrazoado jurídico coeso, além da qualidade didática, evidente na distinção entre os gêneros de prisão, e da proficiência linguística.

    1. Dr. Tasso, bom dia.
      É com imensa alegria que recebo a sua crítica. Muito obrigado por ler o texto e contribuir com a minha formação (sempre continuada) no campo da escrita (agora aqui no portal).
      Abraço

  2. Sou acadêmico em Direito, parabenizo o AUGUSTO Dr pela contribuição com o suscinto artigo. Em poucas linhas, resumiu toda problemática que ocorre no judiciário brasileiro do ponto de vista da punição.
    Precedentes perigosos, decisões monocraticas, e todas outras má sorte vindo do STF na relação com o Processo Penal, romperam os modais deônticos das normas processuais.
    SISTEMA PENAL ACUSATÓRIO no Brasil; inexistente! E assim… se trás a luz o flamigerado DIREITO PENAL DO INIMIGO!
    M.I.C.T.M.R . ‘ .

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