terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Artigo de segunda #18 – O PESO FOSCO DA PELE

Publicado em 25 de dezembro de 2023, às 16:34
Fonte: José Neres – Professor. Membro da AML, ALL, APB e da Sobrames-MA
Imagem cedida pelo autor.

Tenho em mãos a mais recente obra literária do poeta Antonio Ailton – A camiseta de Atlas (Edufma, 2023, 96 páginas). Corro o risco de ser enganado por uma apressada leitura perigráfica do livro. Já conheço o autor há praticamente três décadas. Já li todos os seus livros anteriores. Tive a honra de fazer parte de sua banca de defesa de monografia no Curso de Letras da Universidade Federal do Maranhão. Gostei da capa. Achei a impressão e a diagramação impecáveis. Li o prefácio assinado pelo poeta Rogério Rocha. Li os posfácios escritos pelos também poetas Ranieri Carli e Bioque Mesito. Li as elogiosas palavras da acadêmica Laura Amélia Damous na quarta capa do livro… Mas nada disso terá sentido se os poemas que compõem o livro não forem bons.

E se esse novo livro for mais fruto da vaidade do que do labor poético, da luta vã com a palavras, como dizia nosso Carlos Drummond de Andrade? Como o “se”, o “quase” e o “talvez” dificilmente têm o poder de reverter a experiência da leitura, deixo de admirar o trabalho gráfico e mergulho nas páginas d’A Camiseta de Atlas. Logo me deparo com o poema que dá nome ao livro. Encontro então um Antonio Ailton social e visceral ao mesmo tempo. Um homem irrequieto e incomodado com as agruras do mundo e, ao mesmo tempo, preocupado com a busca das palavras exatas que possam representar uma indignação difícil de ser contida. A camiseta desse Atlas mitológico e pós-moderno ao mesmo tempo chega ao público impregnada do suor que emana da exaustiva exploração sofrida ao longo de tantos séculos.

O poema traz imiscuídos em seus versos, ao mesmo tempo, ares de metalinguagem, de metaforização e de engajamento. No final desse primeiro poema, o leitor entra em contado com a constatação de que:

O poeta é este – ou um trabalhador como eu

que não desiste de cantar

com o mundo nas costas (pág. 17)

Mas não para por aí. Esse desabafo poderia ser algo isolado e sem continuidade ou consequências ao longo do livro. Mas não é bem assim. Aparentemente não tenho em mãos uma reunião aleatória de poemas escritos ao longo dos anos e que foram enfeixados em um livro – como é muito comum acontecer. Nada disso! Trata-se de um trabalho planejado e que se concentra na busca de uma unidade. Os poemas giram em torno de uma temática que podem levar à reflexão acerca das inúmeras injustiças sociais. Marx, Engels, Hobbes, Weber, Durkheim, Bauman, Berman, Debord, Gullar, Pessoa, Drummond e Poe são alguns dos adesivos decalcados na camiseta de Atlas. Mas não estão ali apenas como meros enfeites retóricos. São essenciais para aguçar a percepção do leitor sobre dramas de indivíduos às vezes invisíveis, às vezes invisibilizados…

Página a página, verso a verso, o eu lírico destrinça um emaranhado de incômodas situações, chegando mesmo a dizer que “a maior arte da política é o cinismo” (pág. 41) e a, no mesmo poema, denunciar a expropriação de bens dos trabalhadores que nem mesmo possuem bens para serem expropriados.

No livro de Antonio Ailton é possível encontrar um verdadeiro desfile de profissionais que são essenciais para que a gigantesca engrenagem social não fique emperrada, mas que, por serem vistos como seres refugados, conforme diria Zygmunt Bauman, não ocupam lugar de destaque nas esferas midiáticas. Contudo, sem esses elementos, a vida se tornaria mais difícil e menos bela. Essa é a tônica do poema “Família” (pág. 77), no qual é perceptível o sentimento de angústia e de confrontação com relação a realidades tão próximas. Nesses versos, o poeta patrocina a aproximação da aparência e da materialidade do belo ofuscante como a essência invisível e muitas vezes desprezada por ser incômoda.

Quando você passar numa cidade

e sentir o cheiro dos jasmineiros em flor

ali há um membro

de minha família

sendo usado

para empanar

o odor

dos canais, galerias

e rede de esgoto

Podemos dizer que, dentro das possibilidades oferecidas pelo gênero lírico, este novo livro de Antonio Ailton é cirúrgico. Porém, nessa cirurgia poética em tinta e papel algumas marcas devem  ficar expostas, sem a necessidade do uso de algum artifício para esconder as marcas de algumas fraturas expostas pelas quais a sociedade vem passando ao longo de sua história. A camiseta de Atlas está irremediavelmente manchada de suor, sangue e lágrima. E, conforme foi dito anteriormente, cada poema parece ter sido projetado para estar exatamente no local em que está. É um livro para ser lido aos poucos, sem pressa…

Mesmo eivado de críticas a um sistema obsceno e sem escrúpulos, o livro é carregado de esperança. De esperança por um futuro melhor, ou, pelo menos, da existência de um futuro. Em algum momento, o poeta, “fatigado e triste”, “triste e fatigado”, deixa-nos uma mensagem:

O poeta é um ser desamparado

mas dispensa a minha ajuda e a tua

Quer seja ele ríspido ou calado

uma alegria estranha lhe excetua (pág. 51)

Para terminar, fica a ideia de que um bom livro vai sempre além de uma bela capa ou de “um título bacana” (pág. 61). Um bom livro é capaz de nos ajudar a dividir esse imenso peso que a vida nos obriga a levar. Faz o “peso fosco da pele” (pág. 15) conduzir a humanidade na busca da esperança de dias melhores.

4 respostas

  1. José Neres, com sua vasta e irrefutável cultura literária encerra a última segunda-feira do ano com este magnifico artigo. Abraço deste seu admirador.

  2. Muito bom este texto do Escritor José Neres a cerca do último livro do poeta Antônio Hailton, concluindo que ” o peso fosco da pele” faz conduzir a humanidade na busca da esperança de dias melhores.
    Também li este livro, que adquiri no dia de seu lançamento.
    Parabéns aos dois escritores

  3. O escritor e acadêmico, José Neres, mostra em análise a alma dessa nova obra do poeta Antônio Ailton e conversa com ela o que nós gostaríamos de saber antes de lê-la. Mais um texto brilhante sibre uma belíssima obra poética.
    Parabens!

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