Por Paulo Thiago Fernandes Dias[i]
Este texto inaugura a coluna “Controvérsias Criminais” neste espaço, que me foi gentilmente cedido pelo dileto e imortal professor Marcos Fábio Belo Matos, vice-reitor da Universidade Federal do Maranhão e grande entusiasta da leitura, do ensino, da pesquisa e da cultura.
Ao mesmo tempo em que registro a minha gratidão ao professor Fabio pela oportunidade, manifesto o meu desejo de que o público se interesse pelas reflexões, estudos e inquietações que exporei nesta coluna. Sintam-se convidado(a)s ao bom e necessário debate, notadamente sobre o campo do saber para o qual venho dedicando energia e tempo nos últimos anos. Refiro-me às Ciências Criminais.
É comum ouvir de estudantes que as disciplinas afetas às Ciências Criminais (Penal, Política Criminal, Criminologia e Processo Penal), embora nem todas integrem a grade curricular básica da maioria das instituições de ensino, são as mais interessantes do curso de Direito. Difícil precisar a origem de tal atração no(a)s estudantes. O certo é que o crime está em todos os lugares: seja no noticiário, nos acalorados papos nas briosas mesas de bar, nos livros religiosos, bem como nas produções cinematográficas, só pra ficar nesses exemplos.
Por conta dessa quase onipresença do crime, não é incomum encontrar inequívocos “especialistas” no assunto em nosso entorno ou até mesmo nas pouco amistosas redes sociais. Quantos especialistas em Direito Penal formados pela “faculdade de Direito do zap-zap” você conhece? Muitos eu imagino. Ele(a)s estão por toda parte, inclusive na palma de sua mão, emanando certezas e convicções sobre violência, crime e castigo nos incontáveis e incessantes grupos de whatsapp e telegram (só pra citar os mais conhecidos).
Tiozão tóxico, esteta da treta
Vive nas cavernas de outro planeta
Tiozão tóxico, esteta da treta
Direto das cavernas de outro planeta
Online[ii]
Não quero com isso dizer que apenas os “escolados” podem discorrer sobre temas jurídicos. Seria, no mínimo, arrogante de minha parte. Porém, se estamos sempre falando, compartilhando, curtindo, discutindo e emitindo opiniões a respeito de questões ligadas às Ciências Criminais, como não conseguimos escapar da síndrome do carro atolado, por meio da qual as pessoas empurram o carro em sentidos opostos, mantendo o veículo no atoleiro?
Esse atoleiro se mostra ainda mais evidente quando, além de uma mídia comercial muitas vezes despreparada e mais preocupada com a audiência a todo custo, a qualidade da informação se mostra muito mais duvidosa, pois, afinal de contas, eu preciso engajar nas redes sociais, eu preciso de likes, eu preciso que as pessoas (ou os robôs) briguem sem parar na caixinha radioativa de comentários.
Manter-se bem informado dá trabalho. Mas quantas pessoas, mesmo estudantes e profissionais do Direito, querem ou podem ir ao encontro de fontes confiáveis? É mais fácil “se informar” com o que tá viralizando nas redes sociais. É mais cômodo usar a viseira digital que chamamos de smartphone.
A democracia em tempo real sonhada nos inícios da digitalização como democracia do futuro, se mostra como uma ilusão completa. Enxames digitais não formam um coletivo responsável, que age politicamente. Os followers, na condição de novos súditos das mídias sociais, deixam-se adestrar em gado de consumo por smart influencers, influenciadores inteligentes. Ficam despolitizados. A comunicação dirigida pelos algoritmos nas mídias sociais não é nem livre, nem democrática[iii].
É que desde a redemocratização brasileira (1988), milhares de condutas foram criminalizadas, centenas de milhares de pessoas foram encarceradas (e até mortas), milhões e milhões de reais foram torrados em políticas criminais fracassadas e o país segue registrando números terríveis em matéria de segurança pública[iv].
Da promulgação da Constituição da República até hoje, já se aprovou lei penal para quase tudo no Brasil: a) desde uma lei que torna hediondos os mais diversos crimes contra o patrimônio, mas deixa de fora o delito de homicídio qualificado (redação original da Lei nº 8072/1990); b) até aquela que considera hedionda a conduta de adulterar ou comercializar um cosmético falsificado.
“Quase todo mundo sabe que comercializar produtos com finalidade terapêutica ou medicinal que sejam falsificados, corrompidos ou adulterados é ilegal. Mas pouca gente sabe que importar e comercializar um shampoo anticaspa pode levar a responder a um processo por crime hediondo”[v].
Entre 1988 e 2023, a população carcerária brasileira saltou de menos de 100mil para mais de 800mil pessoas[vi], mas é recorrente o discurso popular segundo o qual, prende-se pouco no país. Lema esse constantemente reproduzido por figuras públicas ligadas à extrema-direita no Brasil[vii].
Para outro grupo, os direitos humanos só deveriam servir aos chamados humanos direitos. Dessa maneira, as ações truculentas das forças policiais estariam devidamente legitimadas contra todos aqueles considerados como estranhos ao grupo dos tais humanos direitos. Não por acaso, o slogan “CPF cancelado”, típico de grupos criminosos, tornou-se tão popular nos últimos anos[viii].
Em 2004, sob a orientação da professora Doutora Ana Claudia Pinho, apresentei a monografia intitulada “Execução Penal: garantias da pessoa presa”, como requisito para aprovação no Trabalho de Conclusão do Curso de graduação em Direito pela UFPA. Nesse trabalho, discorri sobre os principais direitos fundamentais violados pelo Estado em relação aos seus custodiados.
Não foram poucos os comentários depreciativos que ouvi acerca do meu trabalho. Muitas diziam que presos não deveriam ter direitos ou que possuíam regalias demais. Para tantos outros, executar as pessoas presas resolveria o problema.
Por não compartilhar dessa visão de mundo, segui (e sigo) crítico à selvageria institucionalizada pelo Estado brasileiro em relação, destacadamente, à situação das pessoas encarceradas (provisória ou definitivamente). É uma questão de coerência. Não se trata de preferência ou oportunismo, como muitos têm feito, inclusive para fins de obtenção de capital político perante a parcela menos bem informada da população[ix].
Nessa linha de raciocínio, a morte do preso provisório Cleriston Pereira da Cunha, dentro do complexo penitenciário da Papuda em Brasília, não pode ser naturalizada, tolerada e muito menos vista como uma questão partidária.
Como o Tribunal Superior que decidiu pelo reconhecimento do estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário[x] é o mesmo que permitiu a morte de um detento (provisório), quando até parecer favorável pela soltura já havia sido emitido pelo Ministério Público (titular da ação penal)?
Cleriston não é a primeira vítima da indiferença estatal e do descaso com os custodiados penais no país. Provavelmente não será o último. Mas que essa grave violação de direitos humanos sirva, não só para responsabilizar os agentes envolvidos e o Estado brasileiros, nas respectivas esferas jurisdicionais, como também para sensibilizar a comunidade jurídica e a população em geral de que ninguém merece ser coisificado, fundamentalmente, quando se vive num Estado dito democrático e de Direito, estruturado pela defesa da dignidade da pessoa humana (sem exceção).
Cara(o)s leitore(a)s, até breve.
[i] Doutor em Direito (PPGD/UNISINOS). Mestre em Ciências Criminais (PPGCRIM/PUCRS). Bacharel em Direito (CCJ/UFPA). Advogado. Professor Universitário. Pesquisador.
[ii] GESSINGER, Humberto. Toxina. In: Quatro cantos de um mundo pequeno. Rio de Janeiro: Deck disc, 2023.
[iii] HAN, Byung-Chul. Infocracia: digitalização e a crise da democracia. Petrópolis: Vozes, 2022, p. 48.
[iv] “Em 2022, o Brasil registrou 47.398 mortes violentas intencionais (MVI), categoria criada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) que agrega as vítimas de homicídio doloso (incluindo feminicídios e policiais assassinados), roubos seguidos de morte, lesão corporal seguida de morte e as mortes decorrentes de intervenções policiais. Esse número só é maior daquele observado em 2011, primeiro ano da série histórica monitorada pelo FBSP. Em termos relativos, a taxa de mortalidade ficou em 23,3 por grupo de 100 mil habitantes, recuo de 2,4% em relação ao ano de 2021. Mesmo significando uma redução de ritmo em relação aos anos entre 2018 e 2021, essa pequena queda é positiva e precisa ser realçada. Todavia, ela também revela, como veremos na sequência, tensões, limites metodológicos e problemas que devem ser destacados, sob o risco de a sociedade brasileira ser induzida a acreditar na ideia de que o país resolveu seu dilema civilizatório e agora é uma nação mais segura. Estamos longe disso. Ainda somos uma nação violenta e profundamente marcada pelas diferenças raciais, de gênero, geracionais e regionais que caracterizam quem são e onde vivem as vítimas da violência letal” FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em: 22 nov. 2023, p. 24.
[v] TOTH, Marina. Artigo 273 do Código Penal: crime hediondo e os produtos sem registro na Anvisa. Conjur, 8 jul. 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jul-08/marina-toth-crime-hediondo-produtos-registro-anvisa/. Acesso em 22 nov. 2023.
[vi] Fonte: https://portal.unit.br/blog/noticias/brasil-tem-mais-de-800-mil-presos-e-deficit-de-200-mil-vagas-no-sistema-carcerario/
[vii] Fonte: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-08/vivemos-um-paraiso-da-impunidade-diz-coordenador-da-lava-jato
[viii] Fonte: https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/06/4934117-bolsonaro-comenta-morte-de-lazaro-cpf-cancelado.html
[ix] Fonte: https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2023/11/6658396-bolsonaristas-criticam-stf-e-moraes-por-morte-de-preso-do-8-1-na-papuda.html
[x] Fonte: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=515220&ori=1
2 respostas
Sempre um prazer ler uma obra tão rica e bem escrita.
Texto excelente, professor Dr. Paulo Thiago!!
Talvez, na condição de pai, de tão capaz jurista brasileiro e, concomitantemente, excelente escritor, e, diga-se de passagem, sem qualquer contaminação do pedantismo verificado, em muitos aqueles, dotados de conhecimentos acadêmicos, em nossa sociedade humana.
Meus parabéns, querido e amado filho, pela riqueza de conhecimentos à luz da ciência jurídica, tão pedagogicamente, ou didaticamente, neste texto, por ti, abordada. Senti-me, feliz, orgulhoso como, adepto do Cristianismo, estou convicto de que, o meu filho Paulo Thiago, quando defende a vida de um prisioneiro, independentemente, de sua casta social, étnica, sexo, religião, facção política, nível econômico, intelectual, e, outras adjetivações humanas, involuntariamente, mostrou-se-me, abraçado com, Jesus Cristo, Sócrates, Platão, Sêneca, Marco Aurélio, além de outras maravilhas humanas que, um dia, durante, suas passagens por aqui, neste Planeta, pagaram com a própria vida, a defesa de suas teses em defesa da dignidade do ser humano. Pude vê-lo, ainda, assistindo o médico francês-Desgennetes desafiar, Napoleão Bonaparte, quando, esse perverso imperador francês, o ordenara a abreviar a morte dos abatidos prisioneiros de guerra. Recebendo do médico a seguinte resposta: “A minha missão, imperador, é salvar vidas, nunca abreviar a morte “! Segundo, o nosso professor. Barroso, Medicina Legal, UFPA, Napoleão, calado ficará, virou as costas e se despediu calado. Naquela época, era uma atitude suicida desafiar o tirano Bonaparte! Continues, assim, sempre, sempre, sempre. Sejas,um exemplo de um Apóstolo Thiago, sempre! Beijos, meu querido amigo e filho primogênito! Teu pai, Itamar Dias Fernandes.