sábado, 19 de abril de 2025

Artigo de segunda 15: MELHOR NÃO LER… PELO MENOS ESTE CONTO

Publicado em 4 de dezembro de 2023, às 5:16
Fonte: José Neres – Professor. Membro da AML, ALL, APB e da Sobrames-MA
Imagem criada com auxílio de IA.

Vou parar de ler. Ponto. Vou parar de ler. Simplesmente não irei mais ler.

Farei quarenta e cinco anos na próxima semana e, se bem me lembro, já tenho quarenta anos de leitura nas costas. É o suficiente.

Comecei a ler por influência de mamãe, que era viciada em leitura. Em sua mesa de cabeceira sempre havia um ou dois livros. Assim que comecei a ler as primeiras sílabas e palavras, ela foi me introduzindo nesse louco universo da leitura. No começo foram livros simples, mais com figuras do que com palavras. Aos poucos, as figuras foram desaparecendo e dando lugar às páginas cheias de sinais gráficos. O preto no branco!

No começo era muito divertido. Eu, tímido que sempre fui, encontrei nas páginas dos livros o lugar ideal onde jamais seria perturbado pelas pessoas. Nem mesmo por mamãe. Ela, até o último dia de sua vida, respeitou meus momentos de leitura. Com um livro na mão, fui poupado de um monte de tarefas. Ufa!

Mas mamãe morreu, vai fazer dez anos. Uma morte estúpida! Atravessava a rua concentrada na leitura de um livro. Nunca esqueço: Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago – quando o motorista que vinha concentrado nas mensagens que enviava pelo celular atropelou-a e matou-a em plena quatro e vinte da tarde. A vida não faz sentido. Na verdade, a literatura não faz sentido

Depois da morte de mamãe, comecei a reparar que perdi muito tempo de minha vida lendo coisas sem o menor sentido. Por isso agora resolvi parar. Que sentido tem ler uma história de um coelho que se transforma em muitos animais e tem o sonho de virar gente. Que sentido tem acompanhar o retorno de um guerreiro que, para voltar aos braços da amada, enfrenta sereias e uma feiticeira capaz de transformar homens em porcos? Qual a graça de ler a história de um homem que derrete durante um banho, sobrando dele apenas os testículos e um pouco de pelo no ralo do banheiro? E aquele livro que quase ninguém leu, mas que todo mundo diz que é bom? Aquela história do defunto que conta a própria história?

Perdi horas e mais horas de minha vida lendo um livro que nunca teve final, pois todos os exemplares estavam com encadernação errada. Quanto arrependimento. E pensar que eu cheguei a me divertir lendo a história de um cachorro-quente que ganhou vida e até virou prostituto! E ainda teve aquele caso em que um professor que tem nome de ex-governador e ministro recomendou que eu lesse aquela história de uma embarcação que, com ciúmes de seu dono, comete o suicídio. Meu Deus! Odeio aquele professor!

Depois de passar anos lendo a história de um cara que só poderia ser ferido no calcanhar, de outro que não podia olhar o próprio retrato, de um que ao acordar estava se transformando em um inseto, de ET,s que entrevistam lendas em uma cidade, de imaginar um cara dando volta na terra a bordo de um balão, de um homem que nasce velho e vai ficando jovem, de um príncipe que vive em um planeta acompanhado de uma flor e de um médico que se transformava em monstro, resolvi parar de ler. Tenho coisas mais importantes para fazer.

A decisão está tomada. A partir de hoje só leio as notícias de jornais e, no caso de televisão e da internet, nada de filmes… apenas jornais e documentários. Preciso de uma dose de realidade para me descontaminar desses quarenta anos de fantasia e de ficção. Decisão tomada!

***

Hoje faz um mês que decidi parar de ler livros fantasiosos. Sinto-me muito bem. Mais disposto. Mais leve. Até parece que minha cama está maior. A TV do meu quarto parece imensa. Fico zapeando de jornal em jornal. Gosto também de documentários. Todos são ótimo e mostram o mundo de verdade, sem firulas. Estou feliz.

Cada dia parece que meu quarto está maior. Apesar da dificuldade de descer da cama, que está cada dia maior e mais alta, estou intensamente feliz. Também estou com dificuldade em abrir a geladeira, que é enorme, e de alcançar o fogão… Mas não tem problema, peço comida e pago tudo pelo aplicativo. Nem preciso sair de casa. A realidade vem até a mim pelos noticiários. Como é gostoso viver na realidade!

Só tenho uma dúvida: que irei fazer com tantos livros? Doar para uma biblioteca? Chamar os bombeiros para tocar fogo neles, como li certa vez em uma dessas obras distópicas? Mas os livros são tão grandes… Nem se eu quisesse eu conseguiria abrir um deles. São imensos! Se um cair sobre mim é capaz de esmagar-me… Não irei doá-los. Isso seria contribuir para que alguma pessoa incauta caia em um daqueles mundos de fantasia. Não quero isso para ninguém… Acredito que eles possam servir como isolamento térmico, pois protegem as paredes de minha casa. Nunca havia reparado como ela é tão grande, como tem tanto espaço… O único problema é que minha diarista parece que parou de vir arrumar essa bagunça. Da última vez, vi ela gritando meu nome… eu falava com ela e ela parece que não me ouvia. Nunca havia reparado que ela era tão alta… imensa… Pegou o dinheiro que estava sobre a mesa e saiu batendo a porta.

Credo! O barulho da TV é tão alto. As notícias de hoje não foram muito boas. Mulheres assassinadas. Acidentes. Guerras. Crime organizado. Anúncio de recessão. Dinheiro desvalorizado. Corrupção. Estupros. Crimes de encomenda. Desemprego. Inflação…

Estou com dificuldades em trocar os canais da TV. Meu celular está com a bateria descarregada. Para que fazem aparelhos tão grandes e carregadores tão pesados? Absurdo isso! Ontem apareceu uma foto minha na TV. Parece que estavam me procurando. Engraçado, estou sempre aqui na minha imensa cama, vendo a realidade passar na gigantesca tela de minha TV. Acho que a tela é maior que um edifício. Que som alto!

***

Ontem vieram umas pessoas aqui. Arrombaram a porta, gritaram meu nome, reviraram minhas coisas. Até minha diarista estava com eles. Gritei: Estou aqui. Povo surdo. Devia ser pelo barulho da TV. Não duvido de nada.

Levaram meu celular, alguns pen-drives de que eu nem me lembrava mais, meu computador. Ali só vão encontrar arquivos de livros em PDF. Acho que tenho mais de dez mil. Como pude perder tanto tempo acumulando livros físicos e virtuais. Mamãe era boba. Ela dizia que quando a gente não lê acaba atrofiando e diminuindo, diminuindo até desaparecer… Besteira. Besteira!

Mas o pior aconteceu: Na saída, minha diarista pegou o controle remoto e desligou a TV. Agora estou aqui, no meio de minha imensa cama – acho que ela é maior que um estádio de futebol – com os lençóis bagunçados, sem TV, sem meus aparelhos e perdido em um silêncio. Acho que vou dormir um pouco. Faz tempo que estou acordado.

Só tenho medo desses bichos enormes que passeiam pela cama. Uma hora dessas um deles me pega e me devora… Mas fazer o quê? Faz parte da realidade. Já vivi tempo demais mergulhado nas ficções sem sentido. A realidade é esta e ponto final.

Vou dormir. Quando eu acordar, esse pesadelo será uma página virada. Tchau! Até logo! Adeus…

3 respostas

  1. Agradável leitura, professor José Neres, com a qual percebi certa identificação, em que pese ao paradoxal tom sutilmente jocoso.

    Ainda bem jovem, adverti-me da importância secundária da ficção, ao raciocinar que, se era de ler, que lesse livros de natureza diretamente instrutiva.

    Não que não tenha lido algumas poucas dezenas de obras fictícias; aliás, “O Alienista” e “Brás Cubas”, duas vezes. Mas cedo concluí que melhor proveito obteria da leitura de obras sobretudo de áreas das ciências humanas, tais como as da filosofia e psicologia, até mesmo por necessidade terapêutica.

    Mas, retornando ao artigo, sobressai o fato de que a dualidade entre a busca pela realidade palpável e a presença de elementos fantásticos produz uma narrativa que, embora declare desinteresse pela ficção, ironicamente se entrelaça com elementos alegóricos.

    A par de inusitada originalidade, o recurso revela aprazível maestria estilística.

    Parabéns.

  2. José Neres, Riba!
    Desculpe-me a intimidade, já que, agora, és imortal. Relutei em escrever, achando que não teria vocabulário suficiente para uma “crítica literária “, mas vão aí palavras que, creio, sejam tão importantes quanto, pois revestidas de afeto e alegria. Trilhaste bem teus caminhos “ficcionais”. E era para ter alguma dúvida? Relembro um fato que me deixou estupefato. Aquela professora de literatura, do Curso de Letras, aquela que não atribuía nota acima de 8,5 para ninguém te deu 10,0, e logo na primeira prova, pensei: tem algo errado aí!. E não é que tinha mesmo!! Alvísseras , por tuas conquistas e por nos proporcionar leituras necessárias de sua vasta produção literária.
    Abraço forte!
    Mário Jorge.

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