terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Os mortos morrem devagar

Publicado em 12 de novembro de 2023, às 9:08
Fonte: Fonte: Fonte: Cristiane de Magalhães – poeta, professora de Língua Portuguesa.
Senior couple looking at family photo album. Imagem: FreePik Premium.

“uma crise de infarto dura cinco minutos

um acidente de carro é questão de segundos

os vivos morrem logo

são os mortos que morrem devagar

são os mortos que seguem morrendo depois que os velamos, que os enterramos

passam-se dias, e ainda encontramos os fios do seu cabelo espalhados pela casa”

Difícil discordar da poeta Mar Becker neste assunto. Os mortos se vão mesmo a passos lentos. A mesma poeta diz que os mortos são lentos como é lento o amor; como é lento reconhecer uma letra, que nos faz lembrar as mãos; como é lento imaginar as mãos que nos faz lembrar o pulso; como é lento pressentir o pulso que nos atravessa pelo sangue. E ela tem razão.

Três dias depois, os óculos repousam sobre as últimas letras lidas antes de partir. Dois meses depois, o hino predileto rodopiando em minha memória. Quatro anos depois, é estranho me habituar ao emprego do verbo no passado para me referir ao que ela dizia, fazia, pensava, sentia. No entanto, me habituei, afinal, se acostumar com a saudade é o que as pessoas normais fazem para atender às demandas diárias, abrir portas, construir prédios, correr maratonas, permanecer vivo.

Ainda gasto alguns minutos relutando em ouvir o som da minha própria voz, tentando transferir a estranheza das palavras para uma instância fora de mim. Mas passada a reminiscência, relembro que já me habituei à ideia de incorporar suas sábias verdades à minha essência de vida.

– Como dizia minha mãe: fazei o bem sem olhar a quem. 

O bálsamo curador de suas preces disfarçadas de rimas despretensiosas fazem bem a mim e aos que me cercam. Seriam os ensinamentos de minha mãe algum resquício de luto ou uma reparação à dureza de sua ausência? Se for luto, derruba-se uma certeza quase científica: a de que o luto duraria apenas três meses. Questiono-me se os criadores desses protocolos já perderam alguém importante algum dia.  Caso seja reparação, ganho o privilégio do agradecimento.

Acredito ser mais frutífero agradecer por ter tido a oportunidade de conviver com alguém de tamanha grandeza de alma.  E fazer dessa gratidão uma nova forma de vida. Mas isso não significa que o luto tenha acabado. Ele apenas se transmutou em outra substância mais bela.

Como dizia minha mãe: só se conhece alguém quando já se comeu uma “saca” de sal junto.

Elaboro suas filosofias inusitadas e delas me alimento tal qual me alimentava de seu amor materno enquanto aprendia suas lições. Sei que agora ela está num lugar seguro e que a fonte divina a preenche eternamente, emanando cuidado materno enquanto eu aqui estiver. Dentro do meu peito mistura-se à saudade a certeza de que ela está segura e feliz e essa certeza é o que me garante que seu cuidado está sempre comigo.

…e o vazio dá lugar à maior de todas as constatações: quem tem Deus nunca está só, como dizia minha mãe. 

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