“uma crise de infarto dura cinco minutos
um acidente de carro é questão de segundos
os vivos morrem logo
são os mortos que morrem devagar
são os mortos que seguem morrendo depois que os velamos, que os enterramos
passam-se dias, e ainda encontramos os fios do seu cabelo espalhados pela casa”
Difícil discordar da poeta Mar Becker neste assunto. Os mortos se vão mesmo a passos lentos. A mesma poeta diz que os mortos são lentos como é lento o amor; como é lento reconhecer uma letra, que nos faz lembrar as mãos; como é lento imaginar as mãos que nos faz lembrar o pulso; como é lento pressentir o pulso que nos atravessa pelo sangue. E ela tem razão.
Três dias depois, os óculos repousam sobre as últimas letras lidas antes de partir. Dois meses depois, o hino predileto rodopiando em minha memória. Quatro anos depois, é estranho me habituar ao emprego do verbo no passado para me referir ao que ela dizia, fazia, pensava, sentia. No entanto, me habituei, afinal, se acostumar com a saudade é o que as pessoas normais fazem para atender às demandas diárias, abrir portas, construir prédios, correr maratonas, permanecer vivo.
Ainda gasto alguns minutos relutando em ouvir o som da minha própria voz, tentando transferir a estranheza das palavras para uma instância fora de mim. Mas passada a reminiscência, relembro que já me habituei à ideia de incorporar suas sábias verdades à minha essência de vida.
– Como dizia minha mãe: fazei o bem sem olhar a quem.
O bálsamo curador de suas preces disfarçadas de rimas despretensiosas fazem bem a mim e aos que me cercam. Seriam os ensinamentos de minha mãe algum resquício de luto ou uma reparação à dureza de sua ausência? Se for luto, derruba-se uma certeza quase científica: a de que o luto duraria apenas três meses. Questiono-me se os criadores desses protocolos já perderam alguém importante algum dia. Caso seja reparação, ganho o privilégio do agradecimento.
Acredito ser mais frutífero agradecer por ter tido a oportunidade de conviver com alguém de tamanha grandeza de alma. E fazer dessa gratidão uma nova forma de vida. Mas isso não significa que o luto tenha acabado. Ele apenas se transmutou em outra substância mais bela.
Como dizia minha mãe: só se conhece alguém quando já se comeu uma “saca” de sal junto.
Elaboro suas filosofias inusitadas e delas me alimento tal qual me alimentava de seu amor materno enquanto aprendia suas lições. Sei que agora ela está num lugar seguro e que a fonte divina a preenche eternamente, emanando cuidado materno enquanto eu aqui estiver. Dentro do meu peito mistura-se à saudade a certeza de que ela está segura e feliz e essa certeza é o que me garante que seu cuidado está sempre comigo.
…e o vazio dá lugar à maior de todas as constatações: quem tem Deus nunca está só, como dizia minha mãe.