sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

A Boiúna ou a Cobra-Grande

Publicado em 30 de setembro de 2023, às 18:20
Fonte: Fabio José Cardias-Gomes. Docente-pesquisador de Psicologia na UFMA-Imperatriz. Psicólogo Clínico(Jung) e do Esporte/Exercício(Etnoesporte/Artes Marciais).
Imagem: FreePik Premium

No nosso folcore, lendas e encantamentos, a simbólica da mãe devoradora de todos os tempos: A Serpente, aquela que pode engolir os filhos ao nascer, imagem retirda da Mãe Natureza em seu aspecto negativo, mórbido, na Amazônia surge com A Boiúna, que é concebida como Cobra Grande, mas que na etimologia vem do tupi M´boiúna, ao que M´boi(cobra) e Una (preta).

Jung, sobre o arquétipo materno, dirá que há uma variedade incauculável de aspectos de sua expressão simbólica, podendo ser positivo e negativo. A Boiúna encontra-se nessa gradação de ambivalência simbólica do arquétipo da Mãe, característica da perspectiva amplificadora junguiana.:

Também conhecida como Cobra Norato, possui variadas narrativas ligadas aos mitos das serpentes, se transfigura na Amazônia como navio iluminado que desliza pelos rios da região, dando-lhe sua ambivalência local como mito de terror e fascínio que atrai o indígena e o caboclo até a morte por meio dos olhos ou pela luz do navio-miragem, um personagem visagento, como se diz nas comunidades amazônicas.

Sendo de origem da tradição oral, já na literatura, o diplomata, cronista e poeta gaúcho: Raul Bopp, coletou a lenda amazônica da Boiúna e a perpetuou com o livro nominado Cobra Norato, de 1976. Outras versões amazônidas, ainda que parecidas, como a seguinte: “Uma das versões do mito circulante na Amazônia conta que uma índia foi engravidada pela Boiúna dando origem a duas crianças. O menino recebeu o nome de Honorato e a menina de Caninana. Honorato não causava nenhum mal, mas a irmã era perversa: prejudicava os animais como também as pessoas. Diante de tanta maldade, Honorato acabou por matar a irmã. Durante algumas noites, Honorato perdia o encanto e ganhava a forma humana, transformando-se em um rapaz. Para quebrar o encanto do Honorato, era preciso que alguém derramasse leite na bocada enorme cobra e tirasse sangue de sua cabeça; mas ninguém tinha coragem de enfrentar o monstro, até que um soldado de Cametá (cidade no interior do Pará) conseguiu realizar tal proeza e libertar Honorato de seu encanto, que voltou a viver com sua família”.

O mito possa ter se originado do medo humano indígena de grandes cobras que se defendem e atacam para se alimentarem as pessoas e animais desprevenidos na beira-rio. Ou que o fenômeno da Terra-Caída provocada pela Pororoca (tsunami amazônida) nas margens dos rios, derrubando árvores grandes, seja atribuída à função da imaginaçao de uma grande cobra que se move e explica o fenômeno. Ou os modos de subjetivação dos povos da floresta se faz pelo encantamento com os fenômenos da natureza, pela qual o assombro e o fascínio compõem a trajetividade do seu sentir e pensar a natureza da qual faz parte e não tem plena compreensão dos seus aspectos positivos e negativos mas ao seu modo encontram os indígenas e caboclos uma explicação, uma compreensão e uma lida com seus medos no território no qual vive sua vida plena.

É no fabulário indígena que surge a lenda da Boiúna, como encantaria do fundo dos rios da Amazônia. Em Geografia dos Mitos Brasileiros, o folclorista Câmara Cascudo dirá que é um mito religioso, no sentido de uma epifânia da floresta. Que há inúmeras narrativas da Boiúna com mãe-d´água, se recriação das mouras portuguesas ou incarnação de um rapaz de nome Norato, em outras versões Honorato, é ciclo de interesse inesgotável de vasta transfigurações,  fiel ao tamanho continental da floresta.

Para os caboclos, ainda temem a cobra-grande que vive embaixo dos rios, vilarejos, povoados, aldeias, quilombos beiras-rio e cidades amazônidas. Em Óbidos no Pará, acredita-se que a cobra-grande ao sair do seu nicho quebrará e levará a cidade inteira para rio abaixo, ao reino da encantaria.

Eu mesmo, com diversas idas ao Marajó, e em diversos vilarejos registrei as lendas da cobra-grande embaixo de pequenas capelas à beira do rio com fantásticas histórias de parar pequenas embarcações nas noites de Natal e Ano-Novo, sem nenhuma explicação material para tal parada repentina. Até mergulhadores nativos se lançaram  à água escura no amanhecer, mas não encontraram nada embaixo das embarcações que explique o fenômeno que não seja aquele atribuída a lenda da força da cobra-grande. Escutar essas histórias reais de diversos caboclos e caboclas que vivenciaram o mesmo é realmente uma vivência misteriosa, numinosa, bem como as diversas histórias de visagens no interior da Amazônia Oriental, seja no Pará, no Marajó ou no Maranhão.

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