Cuidar de si mesmo é uma necessidade cada vez mais evidente em nossos dias. Vivemos apressados, atendendo a demandas e batendo metas. E isso é ótimo para nosso desenvolvimento pessoal e profissional. No entanto, é necessário dar aquela parada no meio da semana para repensar algumas coisas ou para, simplesmente, não pensar em nada. Um momento para apenas estar. Será que conseguimos?
Sabe quando limpamos a memória cache do celular e percebemos que ele passou a funcionar melhor e até mais rápido? Cuidar de nós mesmos é parecido. Às vezes, precisamos fazer “limpezas” mentais. Algumas pessoas fazem isso por meio da meditação, outras leem ou fazem atividade física e outras pessoas escrevem. Eu, particularmente, tenho aderido a esta última. Escrever é uma técnica poderosa de limpeza da nossa “memória cache”, bem como de correção de alguns “bugs” mentais.
Tecnologia de resistência ao biopoder. É essa nomenclatura sofisticada que alguns autores utilizam para se referirem à possibilidade de sobreviver e, melhor ainda, bem viver, por meio da escrita de si. Embora tenha sido “escavada” dos antigos gregos, essa técnica continua atual e eficaz como prática do cuidado de si. Quiçá, o melhor antídoto para lidar com a falta de contemplação reinante na atual conjuntura.
Atualmente, jogamos o jogo neoliberal de estarmos sempre produzindo, produzindo e produzindo. Então, é preciso saber-se jogando e usar essa informação a nosso favor. Só assim saberemos a hora de descansar. Nesse descanso-trabalho que é a escrita de si, nos conectamos com nossas emoções, processamos nossas experiências cotidianas e aprendemos mais sobre nós mesmos. Trata-se de uma ferramenta de higiene mental que nos habilita a interagirmos melhor com os outros e a superar desafios na família, no trabalho e em todos os âmbitos da vida.
Vez ou outra, quando estou escrevendo no meu caderno – que chamo Caderno de Autoanálise – me vem à memória o dia que, na minha adolescência, me livrei de um rato. Nesse dia, eu estava no meu quarto estudando para uma prova e ele desceu do teto para se esconder atrás de um móvel que eu usava como penteadeira. Peguei uma sacola grande, dobrei as bordas para fora no intuito de deixá-la firmemente aberta e coloquei-a de um dos lados do móvel. Do outro lado, fiz barulho com uma vassoura para que o rato se movesse.
A sorte me ajudou, confesso. Ele disparou em direção ao fundo da sacola e eu, prontamente, amarrei-lhe a boca para que ele não escapasse. Um bicho que sempre me embrulhou o estômago e eu consegui vencê-lo apenas com um pouco de paciência, estratégia e sorte. A primeira vez que escrevi sobre esse episódio do rato, identifiquei pensamentos, emoções e até comportamentos que se repetiam na minha vida nos dias atuais. Essa capacidade de elaborar sentimentos é o que mais me fascina na escrita como cuidado de si.
Falando assim, até parece mágica, ou seja, escrevemos sobre um evento traumático e tudo passa a fazer sentido na vida. Mas não é bem assim. Escrever nos ajuda a tomar melhores decisões e a resolver conflitos de forma ética, mesmo, mas os problemas e desafios continuarão existindo. É recomendado, então, que essa seja uma prática constante. Não apenas no setembro amarelo ou quando a ansiedade/depressão já estiver em níveis estratosféricos. Encontrar um lugar tranquilo, delimitar um tempo para escrever regularmente sobre os entraves do dia a dia, sem medo de ser vulnerável, não é frescura ou coisa de adolescente. É exercício reflexivo. É técnica de sobrevivência.
Assim como a vida, a escrita também é processo. Esse caráter movente, processual, se contrapõe a fixidez e diz muito sobre a possibilidade de se criar novas existências éticas. Pelas mãos de quem escreve, acontece um belo movimento de transformação, pois aquele que pinga o ponto final não é mais o mesmo que escreveu o primeiro parágrafo.
5 respostas
Excelente texto. Não apenas uma prática “útil”, mas edificadora no sentido humano do termo. Seja por meio de diários ou caderno de memórias. Sinto que os textos manuscritos tem mais pessoalidade, ou talvez, seja apenas saudosismo anti tecnológico. Me parece que o papel convoca os sentimentos e a tela do computador a uma racionalidade enunciativa. Excelente texto, sempre aconselho aos amigos e alunos.
Sim, Denisson, o manuscrito tem essa dimensão afetiva. Especialmente nos tempos atuais, em que andamos resolvendo tudo por vias tecnológicas, é preciso retornar aos bons e velhos papel e caneta, até para nos desvencilharmos um pouco das telas. Também aconselho meus alunos a manterem um diário como ferramenta de desenvolvimento da escrita e como um “cantinho do pensamento” para eles escreverem sobre os desafios próprios da juventude.
Obrigada pelo seu comentário. Fico feliz que tenha gostado do texto.
Sim, Denisson, o manuscrito tem essa dimensão afetiva. Especialmente nos tempos atuais, em que andamos resolvendo tudo por vias tecnológicas, é preciso retornar aos bons e velhos papel e caneta, até para nos desvencilharmos um pouco das telas. Também aconselho meus alunos a manterem um diário como ferramenta de desenvolvimento da escrita e como um “cantinho do pensamento” para eles escreverem sobre os desafios próprios da juventude.
Obrigada pelo seu comentário. Fico feliz que tenha gostado do texto.
O texto que eu queria ler. Li e reli. Porque não foi apenas um texto que li, mas um texto no qual conversei com a autora, identificando-me com sua escrita e com suas opiniões. E essa é a leitura perfeita, que alia prazer e reflexão, prazer e aprendizagem, prazer e prazer. Parabéns, Cristiane de Magalhães. E muito prazer!
É um prazer também ler comentários como o seu, Eloy. Gosto de dizer que tem textos que conversam conosco. Parece que estão os dois, escritor e leitor, tomando um café e trocando figurinhas.
Foi um prazer “conversar” com você.