Hoje o rio Tocantins dá mais histórias que peixe.
Pelo menos na parte maranhense que passa por Imperatriz, o outrora caudaloso, piscoso e limpo rio é o lugar permanentemente móvel, a referência líquida e incerta que recebe mais esgotos que anzóis e de onde se extraem mais saudades que alimentos.
Não é de estranhar, portanto, que os principais seres vivos do nosso Tocantins sejam os pescadores — não os peixes. Pescadores sem pescado… mas, pelo menos, com muita coisa e muito causo pra contar.
E quem lhes poderia resgatar e documentar as histórias e estórias, as farturas e agruras, vivências e sofrências? Que novo Cristo meter-se-ia a fisgador de gentes, pescador de pescadores?
Jornalistas e historiadores, sim, podem ser os novos colhedores das gentes das águas.
Um desses — James Pimentel, jornalista —, da mais recente fornada do curso de Comunicação Social do campus imperatrizense da Universidade Federal do Maranhão se apresenta aqui, com suas Histórias de Pescador.
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Em agosto de 1864 um decreto estabeleceu que o rio Tocantins pertencia também ao estado do Maranhão. A imensa serpente d’água de 2,4 mil quilômetros fazia toca e leito em nossas terras submersas. E às vésperas de completar 150 anos de “maranhensidade” legislativa, estamos mantendo vivo e forte o rio que, à base de hidrogênio e proteína, tanta vida alimentou, tanta força deu, gerou?
Às vésperas do século e meio daquele decreto, que histórias boas temos a contar para o rio que transportou pessoas e permitiu o início da História imperatrizense? Como já escrevi, foi pelo Tocantins, foi com ele e foi nele que tudo começou. O registro de nascimento de Imperatriz não foi escrito a tinta — foi escrito com água. O Tocantins é a grande pia batismal onde a cidade, ontem, fez sua iniciação e, hoje, exige purificação. Esse rio trouxe, há 161 anos, os fundadores da cidade. Ajudou a fazer a cidade. Ajudou a fazer História. Um rio que só é velho porque se renova. Desde 1852, fundação de Imperatriz, o Tocantins foi um rio que passou, e continua, em nossa vida. Um rio que é permanente porque é passageiro. Transitoriamente eterno.
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Foi conversando à beira desse rio e também navegando por sobre suas águas, foi nadando — e, muitas das vezes, se afogando — em um caudal de informações e possibilidades que James Pimentel fez vir à tona este livro.
O jovem e promissor jornalista e escritor soube ancorar, no Cais do Porto não tão (geologicamente) seguro, seu talento de observador de pessoas, coisas e situações e absorvedor de fatos, relatos e emoções. Na busca de material, envolveu-se emocionalmente, padeceu fisicamente — nada que já não fosse esperado e tão próprio do ofício de caçar conversas e notícias.
Os personagens (entre outros, pescadores e burocratas, atravessadores ou intermediários daqueles profissionais e de seus esforços e produtos), sem o saberem e sem procurarem, encontram em James Pimentel alguém que, sem abdicar dos sentimentos próprios — do que não se envergonha o new journalism —, soube capturar e documentar os depoimentos. Para isso, utilizou-se de discrição e descrição… e em uma e outro soube/sabe ser eficiente.
Vários são os (bons) exemplos em que Pimentel usa essa arriscada arma de dois gumes que é a redação descritiva — que pode ser fastidiosa ou fastigiosa, tanto pode cansar quanto motivar. Para captar/capturar os elementos, anotá-los e transformá-los em texto contínuo, uniforme, a discrição foi uma “arma” adequada — que ele revela no texto… discretamente.
Histórias de Pescador é um livro-reportagem, esse gênero e suporte que põe mais água (com saber e sabor…) no feijão jornalístico. Afinal, o jornalismo não pode “alimentar” seus, digamos, consumidores apenas com esse fast-food dos textos poucos, curtos, como se tivéssemos, nós leitores, apenas dois neurônios (são cem bilhões, viu?).
Aí, com a desculpa de que “as pessoas não têm mais tempo de ler”, certo jornalismo em prática, em especial nas cidades de interior, vai servindo informações em pílulas de mesmo formato, semelhante conteúdo, igual gosto. É dose!… Jornalismo homeopático. Uma sensaboria…
O texto jornalístico e os neurônios estão carecendo de mais plasticidade e menos plastificação. Quase ninguém ousa, pelo menos por estas bandas. Preferem os jornalistas ser usados a ousados. Ninguém arrisca começar a linha inicial do texto de uma reportagem sobre um assassinato (mais um…) com uma prolongada interjeição de dor ou sofrimento: “Aaaaaaaaiiii!…” Ou a sequência onomatopaica de tiros disparados (“Bangue! bangue! bangue!”). Ou a expressão gráfica do ronco do motor em uma corrida de automóveis: “Vruuuuuuuuuummmmm!”
Resumiram o texto jornalístico a uma fórmula e a transformaram em trilho, fôrma e forma: a ocorrência (o que), os personagens (quem), o tempo (quando), o modo (como), local, espaço, ambiente (onde), motivo (por que), intenções, consequências (para que). E com sete elementos faz-se o Jornalismo e descansa-se como uma divindade dos fatos, um deus do texto que descansa no sétimo dia.
Evidentemente, o que deve sair impresso das máquinas, todo dia, é uma publicação jornalística, não um livro de criatividade literária. Mas, convenhamos, há de haver algo a se somar, a se juntar a esse jornalismo-água — insípido, inodoro, incolor, que escorre e some pelos desvãos neuronais para no instante-dia seguinte nada restar. Nem lembrança.
Este livro-reportagem não é apenas um livro que contém uma reportagem e tampouco é tão só uma reportagem que se imprimiu em forma de livro. O texto é alongado para os padrões tradicionais, usuais, do espaço e do cotidiano dos jornais. O texto, sem pretensão de ser literário, tem literariedade — qualidade que a redação jornalística nem sempre observa ou absorve. O autor é mais que autor: aqui e acolá também é personagem — discreta, mas presente, nominada (diria, “pronominada”, identificada por pronomes).
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Quem tem medo do livro-reportagem? Da grande reportagem? A cultura ocidental, pelo visto, não tem (da oriental não pesquisei exemplos). O Brasil medo também não deveria ter — e temos antiguidade nesta área, como os relatos de Euclides da Cunha no final do século 19 para o jornal O Estado de S. Paulo, que se transformaram na citada e felicitada obra Os Sertões. E João do Rio. Revista O Cruzeiro. E Realidade. E…
Livro-reportagem é sobretudo Jornalismo, com o emprego também — por que não? — dos recursos linguísticos, do senso estético da Literatura. Embora quebrando a imposição do lead, porquanto fugindo de uma fórmula eivada de pronomes, advérbios, conjunções…, nem por isso o livro-reportagem abdica da boa prática jornalística: primeiro, informar-se; depois, informar. Só que isso não precisa ser confinado à horizontalidade do papai-mamãe se há a variedade do Kama Sutra…
Já escrevi também que Literatura é ofício com letras. Ainda que use linguagem “média” para comunicar a uma “média” de leitores, o Jornalismo não deve dispensar o uso estético da linguagem escrita e, também, imagética (fotografias, desenhos…).
Há diversos autores — jornalistas e/ou escritores – de livros-reportagem: Gay Talese, Norman Mailer, Tom Wolfe e Truman Capote, “fundadores” do new journalism, o novo jornalismo, que, entre características diferenciadoras do jornalismo “tradicional”, apura com mais precisão e retrata com mais beleza literária os fatos. Tenho o livro e o filme, por exemplo, A Sangue Frio, obra (literária? jornalística?) de Truman Capote considerada referência em termos de new journalism. Ao pesquisar sobre o assassinato de toda uma família nos Estados Unidos, Capote produziu mais de oito mil páginas de anotações e investigou durante cinco anos.
Evidentemente que na cozinha jornalística tanto se servem pratos rápidos (o fast-food cotidiano) quanto se preparam as comidas mais elaboradas. Há espaço para isso e algo mais; não deve havê-lo para concepções esculpidas em aço, para o taken for granted…
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Li, reli e treli este livro. O autor sabe disso. Sabe dos elogios — e das observações e sugestões — que lhe fiz.
A obra vale a pena ler. É boa de ler. O texto é fluido como as águas do rio a que se refere e de onde já se pescaram muitos peixes e alegrias, e por onde já navegaram incontáveis certezas, e onde, hoje, adernam ou soçobram esperanças, e em cujo cais aportam, fundeiam decepções de pescadores.
Este livro é Jornalismo, é Literatura e é História. Aqui se recuperam e se documentam aspectos da vida de pessoas e instituições, de suas características e comemorações. A Colônia de Pescadores e a Associação dos Barqueiros (e as intrigas institucionais e políticas entre elas e a partir delas, que o autor, discreta mas espertamente, pescou)… As festas dos pescadores para São Pedro e para São João (lamentavelmente descontinuadas)… Reflexos e reflexões.
O imperatrizense James Pimentel termina um livro e mal começa a mostrar o bem que pode fazer a partir da escrita, com o cardápio de teorias e o instrumental das práticas que a Universidade lhe serviu. Orgulha-me ter sabido, com surpresa e satisfação, que James Pimentel foi um dos muitos e esforçados ouvintes que já tive em meio a muitos e esforçados ouvintes de minhas palestras em cursos pré-vestibulares, para onde, em meu solitário ide-e-pregai, sou convidado a ministrar palestras sobre Imperatriz, sobre educação, conhecimento e cultura, sobre motivação pessoal e profissional, sobre orientação vocacional, sobre razões primeiras e fins últimos. Sobretudo sobre tudo.
Parabéns, James Pimentel. Imperatriz o viu nascer. Agora, a Cidade-Majestade se vê em renascimento pelas mãos — e talento — de seu filho igualmente nobre.
E isto não é história de pescador…
O projeto “LITERATURA MARANHENSE EM FOCO” é uma iniciativa do Site Região Tocantina, em conjunto com o Jornal O Progresso, coordenado pelo jornalista Marcos Fábio Belo Matos.