sábado, 22 de março de 2025

De contos, causos e oralidades – A cama da véia e a briga do trio

Publicado em 17 de agosto de 2023, às 5:36
Fonte: Helena Frenzel – romanista, letripulista, contadora de causos.
Group of cute animals cartoon character isolated illustration. Imagem: FreePik Premium.

“A véia, debaixo da cama,

A véia criava um gato,

À noite, se danava,

O gato miava e a véia dizia:

Ai meu Deus se acabou tudo,

Tanto bem que eu te queria!”

Quem teria composto esta pérola do cancioneiro nacional? Não faço ideia!

Lembra de Os Trapalhões? Pois bem, quem viveu no Brasil na década de 1980 provavelmente vai lembrar dessa canção na voz do Didi. Didi Mocó Sonrisal Colesterol Novalgina Mufumo, pra ser mais completa, que era como ele costumava se apresentar. Didi era o personagem do humorista Renato Aragão.

Sim, mas não é sobre a véia do Didi que quero falar, e sim, de certo modo, sobre a bicharada que vivia debaixo da cama dela: gato, cachorro, rato… tudo o que a pessoa quisesse pôr nos versos cabia naquele vasto espaço!

Pensando nos bichos, e nas relações entre eles, principalmente na tríade cão-gato-ratito, outro dia me vi matutando de onde teria vindo a suposta inimizade entre o trio. Antes de buscar explicações em trabalhos científicos, achei mais prazeroso dar uma olhada nas histórias populares, matéria prima que me encanta e com a qual adoro trabalhar: contos, causos, mitos, diabo a quatro!

Minha tia Helena – que Deus a tenha em bom lugar! – me contou muitas histórias quando eu era criança. Hoje em dia, vejo que os contos que ela me contou são muito parecidos aos contos afrocubanos que a escritora Lydia Cabrera colecionou e publicou lá pela década de 1940. Sendo semianalfabeta, duvido que minha tia tenha lido em algum lugar as histórias que contava. O mais provável é que ela tenha ouvido versões desses mesmos contos que foram passando de geração em geração entre nossos antepassados afrobrasileiros. Daí a importância de termos registros dessa literatura oral que vai passando de boca em boca.

Um dos contos catalogados por Lydia Cabrera conta o que teria havido entre o cão, o gato e o rato para que eles se tornassem inimigos naturais. Não lembro direito, mas parece que foi assim:

No princípio, bem lá no princípio, os três eram muito amigos. Compadre rato, criado em bibliotecas, de tanto fuçar nos livros um dia aprendeu a ler. Um belo dia, enquanto o rato lia sobre a tal da liberdade, o cão foi percebendo que era submisso e ficou muito triste com sua escravidão. Para acabar com essa tristeza, falou com o deus dos bichos. A divindade, com pena do cão e de sua situação canina, deu-lhe uma carta de alforria.

Sem casa nem bolsos, compadre cão não teve outro remédio que não fosse enrolar a carta na forma de canudo e guardá-la no único lugar que achava seguro: o próprio fi-ó-fó. Funcionou de início, mas logo o canudo passou a incomodar porque o cão tinha que andar com o traseiro sempre empinado, e não podia mais brincar e rolar no chão quando quisesse. Daí ele tirou o canudo da cavidade, limpou direitinho e pediu a compadre gato que guardasse. Ao se ver livre do canudo, o cão ficou tão contente, mas tão contente, que dali em diante passou a esfregar o traseiro no chão sempre que se lembrava do alívio que sentiu ao se livrar do incoveniente.

Compadre gato, que andava miando pelos telhados, achou que seria muito arriscado prender o canudo ao laço que levava no pescoço e foi à casa de compadre rato, que era o único que tinha toca, pedir a ele que guardasse o documento valioso. Compadre rato não estava na toca e o gato deixou o documento nas mãos de comadre rata, que estava com dores de parto. Doida de dor, a rata roeu o canudo e com ele fez um ninho onde se deitou para parir.

Nesse meio tempo, o dono do cão chegou em casa bufando e dando ordens como sempre. Achando aquilo tudo muito abusivo, o cão se negou a obedecer, dizendo que agora era livre. O dono não creu e quis ver a carta de alforria. O cão correu a pedir o documento a compadre gato que, por sua vez, foi à casa de compadre rato buscar o certificado. Compadre rato, tendo visto onde sua esposa repousava com os filhos recém-nascidos, contou a compadre gato o que havia acontecido e esse, gritando “ai meu couro, meu courinho”(1), caiu de unhadas no roedor, que fugiu esbaforido. Compadre cão, ao saber do acontecido, arreganhou os dentes e pulou no pescoço do felino, que como um raio subiu numa árvore e foi se esconder num telhado. Vendo que não tinha mais lenço nem documento, compadre cão pôs o rabo entre as pernas, baixou a cabeça e voltou para casa, mansinho, lambendo a mão do dono.

Desse dia em diante a rinha estava criada: gato persegue rato e gato é perseguido por cão, que inda hoje lambe a mão do dono e aceita sua condição.

Quem diria que o compadrio se desfaria por causa de uma cama ou de um ninho, não? Uns dirão que foi por causa de comadre rata, já que culpar as fêmeas é sempre a prática, mas se os machos pudessem parir, aí sim, o mundo seria diferente, porque com a dor do parto não tem macho que aguente!

Daí que eu digo que a culpa não foi da rata, nem da cama nem do ninho, a culpa foi da dor, que só conhece desatino!

(1) Dizem também que compadre gato gritou “ai meu couro, meu courinho” porque já havia assistido à famosa peça O Auto da Compadecida, e era muito fã de Ariano Suassuna, João Grilo, Chicó e companhia. E sabendo que o couro dos gatos é cobiçado para tamborins, compadre gato anda por aí inda hoje contando sua história, desse “jeitín”:

“Queriam minha pele para tamborim.

Apavorado desapareci no mato,

Eu sou um negro gato!

Eu sou um negro, negro gaaaaaaatoooo!

Miauuuuuuuuu!”

Trecho de Negro Gato, canção de Getúlio Cortes na voz de Marisa Monte.

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