Só se ouve o silêncio
No ouvido que escuta
Tudo a ser da voz.
Ninguém sabe a fala
Na sua garganta:
Nem mesmo a palavra.
A obra de Nauro Machado (1935-2015) é deveras extensa e extremamente rica tanto em formas, quanto em temáticas e em recursos estéticos e estilísticos. Habilidoso no manejo com as palavras, o poeta maranhense dedicou praticamente toda a sua vida à arte da escrita e, quando partiu, deixou para os amantes das letras um legado de aproximadamente quatro dezenas de obras e milhares de poemas, além de ter se dedicado também aos ensaios sobre diversos assuntos, mas principalmente sobre autores de obras literárias, conforme pode ser visto em livros como Campo Ladeado (1973), Moinho e Lavra de uma Água Mental (1988), As Esferas Lineares (1996) e Província: O Pó dos Pósteros (2012), livros nos quais é possível perceber a grande bagagem cultural e a enorme gama de leitura desse intelectual que dominava a arte da escrita e da argumentação coerente.
Era muito comum encontrar Nauro Machado pelas ruas e praças da capital maranhense. Quase sempre vestido com uma calça social e com uma camisa branca e munido de uma pasta e de seu quase inseparável guarda-chuva, o poeta era saudado por muitos admiradores e ignorado por quem não dá valor às artes e à cultura ou desconhece os valores de nossa terra. Cabisbaixo, andar apressado e inundado de poesia, ele respondia timidamente aos cumprimentos e se esquivava dos elogios vazios, mas se comprazia quando alguém demonstrava conhecer sua obra além da superfície.
Ainda em vida, Nauro Machado teve a honra de ser cultuado como grande poeta que sempre foi, recebeu diversas homenagens, muitos prêmios e viu sua fortuna crítica atingir patamares poucas vezes alcançados por um escritor maranhense que tivesse escolhido viver na própria província. Embora pudesse ter escolhido brilhar em outros centros onde possivelmente poderia ser acolhido de forma mais efusiva pela crítica e pelos leitores, ele decidiu que o Maranhão seria seu locus poético. Mesmo tendo escolhido São Luís como sua “Pátria de exílio”, sua obra chamou a atenção de inúmeros estudiosos de renome como Franklin de Oliveira, Antônio Carlos Secchin, Donaldo Schüller, Josué Montello, e Hildeberto Barbosa Filho, entre outros. No Maranhão, trabalhos elucidativos como os de Maria de Nazaré Cassas de Lima Lobato, Ricardo Leão e Antônio Ailton serviram para minimizar a concepção de que a poesia nauriana era hermética e analiticamente impenetrável.
Cercado de reconhecimento, o poeta, na metade do penúltimo mês de 2014, lançou no Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, que na época era um grande polo de divulgação cultural, O Esôfago Terminal, um livro com mais de 300 páginas no qual trata de diversos assuntos, mas que se ancora principalmente na corrosão temática do câncer e, consequente, na perspectiva da morte. O livro inteiro é decorado com as cores sóbrias de uma despedida que, no olhar do poeta, era iminente. Em determinado momento, ele diz que:
Meu corpo é a veste
Com que se vestem
As minhas vísceras.
Não sei da vida
Que me habita
Enquanto vivo.
Como um cadáver
A carregar
Eterna dívida,
Ninguém se sabe
Vestido em si
Enquanto vive. (pág. 142).
Segundo declarou o próprio autor em entrevista concedida a alguns órgãos da imprensa, o livro foi escrito em um intervalo de tempo de aproximadamente quarenta dias, período no qual ele se recuperava de um longo tratamento contra um carcinoma no esôfago. Como em uma espécie de pacto autobiográfico, Machado empresta suas angústias para o eu lírico que se não se esconde diante de temores e de certezas que se multiplicam dentro de um campo semântico que remete sempre à necessidade de preparar-se para O Encontro Final:
Garganta do câncer
Na exaustão do esôfago
Numa fala que é rouca.
Caminho de Deus
Sabendo os segredos
De uma humana boca,
Só a morte real,
Cadáver viril,
Requer da matéria
O seu eterno fim,
Num sopro sem vida
Com forma perfeita. (Pág. 71)
Palavras como câncer, morte, biopsia, metástase, autópsia e outras que remetem direta ou metaforicamente à enfermidade e ao fenecimento do corpo são recorrentes nos poemas, mas acabam de alguma forma fazendo contraste com um velado desejo de uma vida que vá além da materialidade terrena. Em determinado momento, o eu lírico comenta que:
Chegar ao fim
Não chega a vida
Que continuará
Vivendo em outros.
O que se acaba,
Morrendo em um,
É o ser que sou
A ser ninguém,
Numa pessoa
Andando em mim,
Comigo só
Para o meu nada. (pág. 189)
O Esôfago Terminal, assim como todos os demais livros de Nauro Machado, é uma obra densa e que exige muita atenção dos leitores. O poeta não buscava facilidades nem costumava abrir concessões para verbosidades vazias que não tivessem a intenção de construir uma imagem poética que às vezes vai além da compreensão em uma primeira leitura, mas que pode ser descortinada quando o leitor atenta para a harmonia entre os signos utilizados e a temática abordada. Trata-se de um livro em que a despedida toma frente a outras temáticas. Não uma despedida de “até logo”, mas uma de adeus simples e definitivo.
Ao longo dos aproximadamente 300 poemas que compõem o livro, é possível notar-se, a partir de um ponto tido como negativo – a doença – uma oportunidade de o eu lírico vagar seu olhar por diversos pontos que fizeram bem a sua vida e que precisam ficar retidos na retina da memória como doces recordações que não podem ser revividas fisicamente, mas que precisam ser recuperadas mnemonicamente a fim de confortar quem tem certeza da despedida.
Ao ler O Esôfago Terminal, é impossível não vir à mente a dicção poética de Nauro Machado, que foi um poeta coerente com seu estilo do primeiro ao último trabalho. Os poemas são bem trabalhados, trazem os estigmas da dor e da morte, mas também emanam veladas lições de vida e uma sutil ironia, tudo mesclado com o talento de um dos mais prodigiosos poetas da língua portuguesa da segunda metade do século XX e início do século XXI.