Por Cristiane de Magalhães – poeta, professora de Língua Portuguesa.
O bom é que acontecia mesmo! Aquela casa no interior do interior do Maranhão foi palco de muitas trapalhadas culinárias. A mãe não autorizava facilmente a invasão da filha ao território restrito. Para ela, melhor seria se a pirralha se contentasse em ser apenas a “co-pilota” da nave gastronômica.
A nave, popularmente conhecida como fogão, era o dispositivo com acesso negado aos demais membros da casa. Ninguém, além da matriarca, fazia uso da sua máquina produtora de guloseimas. “Não encostem no meu fogão”, ela dizia. “Vocês não sabem cozinhar que preste”. Mas, naquele dia, colocou sua cozinha em estado de exceção e se viu disposta a contemplar a pré-adolescente dando uma de chef.
Dando as coordenadas cuidadosamente, a mãe dizia: vá acrescentando a farinha de trigo aos poucos. Sempre distraída, a menina entendeu “esse é para ficar bem gordo”. Ao abrir o pacote desajeitadamente, espirrou farinha de trigo sobre narizes, olhos e cabelos. Entre espirros e limpações súbitas, a lambança se transformava em tempero. A mistura ideal para adoçar memórias regadas a aventais manchados e risadas.
Não tinham acesso às batedeiras e mixers de hoje. Toda preparação era lenta e ritualística. A conversão da clara de ovo em neve era feita à base de garfadas aceleradas no fundo da tigela de vidro. As duas sozinhas naquela tarde tinham todo o tempo do mundo para mudarem de ideia sobre o lanche vespertino. Partiram então para a próxima tentativa, torcendo para que fosse bem-sucedida.
Depois de encerrado o estado de sítio da cozinha, devido à farinha espalhada no chão, a mãe tomou a frente da nova empreitada. Com a paciência de zen-budista, a mulher pré-aquecia a frigideira enquanto finalizava a mistura dos ingredientes. Cúmplices, se entreolhavam e concordavam que não havia comparação entre mãe e filha no quesito arte culinária. Uma, estabanada, a outra, com mãos cirúrgicas, possuía conhecimento que variava desde a altura correta do fogo à quantidade milimétrica de cada ingrediente.
Em uma época desconectada, a mãe não recorria aos sites de pesquisa para conferir dosagens e “modos de fazer”. Tudo chegava até ela por meio de máquinas do tempo, numa viagem geracional pré-programada por suas ancestrais.
Finalmente, quando a torta atingiu seu ápice, a mãe desligou o fogo e abriu a tampa com cautela. A guloseima tinha uma aparência dourada, convidativa e seu cheiro invadia as narinas da menina como a farinha de trigo invadira minutos antes. Com a frigideira em punho, a mãe escolhia o melhor ângulo para mostrar a torta à filha. Ao alinhar sua obra de arte com os olhos da filha, disse vitoriosamente: é assim que se cozinha.
3 respostas
Que texto lindo, Cristiane!
Uma delícia pra ler devagarinho, saboreando cada palavra milimetricamente empregada nesta torta, digo, neste texto e guardar na memória ….
Obrigada Tereza 🙂
Lindo texto! Lindo comentário seu Tereza!