terça-feira, 15 de outubro de 2024

Mural das Minas #043: Maria Helena Ventura: LITERATURA QUE REFLETE SOBRE A VIDA

Publicado em 21 de abril de 2023, às 8:07
Imagem cedida pela autora.

Maria Helena Ventura Oliveira é natural de Salvador- BA. Casada com o médico Evilásio Oliveira, é mãe de Rodrigo, Érica e Gustavo, engenheiro, educadora e médico respetivamente, e ainda o Rafael, filho pelo coração, e 5 netos.
Chegou em Imperatriz-MA em 31/12/1972. Como assistente social da Secretaria Estadual de Saúde, galgou o cargo de Diretora Regional de Saúde da Região Tocantina. Fundou cinco obras assistenciais na cidade, todas ainda em pleno funcionamento.
Na década de 90, iniciou um programa televisivo de 60 minutos intitulado “Novo Tempo”, na TV Capital (Record) e um radiofônico, “A Vida Além da Vida”, na extinta Rádio Imperatriz. Realiza palestras para alunos em escolas de ensino médio e em empresas, para funcionários, sobre temas relacionados a autoajuda. Semanalmente, escrevia páginas literárias no jornal O Progresso, bem como no Jornal Capital (já extinto), este em coluna intitulada “O Consolador”.
Publicou o livro “A Comunidade Pesqueira de Plataforma”. Em vias de publicação, uma seleção de Crônicas e Ensaios – seu estilo preferido.
É membro da AIL – Academia Imperatrizense de Letras, onde ocupa a Cadeira nº 24. Foi agraciada pela Prefeitura Municipal de Imperatriz com o título de “Cidadã Imperatrizense” e com a “Comenda Frei Manoel Procópio”.

QUADROS DO COTIDIANO

A reunião havia terminado exatamente às 20 horas. Bocejei quase sem me dar conta do ato. Olhei a pracinha. As flores, antes tão viçosas, jaziam no pequeno jardim amarrotadas, sem viço. Havia sido grande o estrago dos pedreiros e seus auxiliares, no vai e vem da construção para reformar o pequeno prédio que sediava um trabalho filantrópico de grande significado para uma população em situação de vulnerabilidade social.
Ah! Como as coisas estavam difíceis – pensei. Dinheiro apertado, todo o mundo com a “maquinha de calcular” fazendo contas. Era no supermercado, nas lojas comerciais, tudo ali, contadinho. Mas os recursos que finalizarão a obra irão aparecer, sim, – concluí. Eles aparecerão. Tem sido sempre assim ante qualquer dos nossos empreendimentos.
Espraiei o olhar novamente pelo jardim, estava tudo tão claro como se fosse dia e, institivamente, olhei para o céu. Dei-me conta de que era a lua cheia. Lá estava ela indiferente às agruras dos filhos de Deus. Olhei-a novamente. Uma coisa não se pode negar: a lua cheia tem um quê de majestade e muito magnetismo que nos contagia.
Era melhor apressar-me. O corpo pedia um sono reparador. Amanhã será um novo dia – pensei com meus botões. De repente, aquela figurinha frágil de mulher, bem ali, na minha frente. Estava encolhidinha em um dos bancos do Jardim, Luzia!… Chamei-a num misto de surpresa e preocupação. Que faz você aí? – perguntei. Ela respondeu-me quase num sussurro: estou esperando sua carona.
Por um momento quedei-me a olhá-la, hoje nos seus quase 40 anos, conservando, porém, a silhueta esbelta que sempre ostentou. Num lance, meu pensamento visualizou aquela adolescente de outrora, classe média alta, seu pai um comerciante próspero. Gente boa, homem direito – diziam todos. Morreu faz muitos anos. Quanta falta fez… Quase nada sobrou dos recursos que possuía.
Vamos! – disse-lhe eu, repentinamente. Conversaremos no caminho.
Já no carro perguntei-lhe de supetão: você está bem? Ela me olhou tristemente, meneou a cabeça e disse de maneira lacônica: Carlos pediu nossa separação. O Carlos? – Perguntei algo perplexa. Por qual motivo? Ciúmes – respondeu-me completamente desenergizada. E continuou: botou na cabeça que eu o estou traindo. Meses atrás teve uma crise semelhante. Desempregado, como você sabe, almoça, dorme, levanta, torna a sair. Para ajudá-lo dispensei a empregada. Arrumo a casa, lavo roupa, preparo as refeições. Minha mãe nos auxilia com os recursos de sua aposentadoria. Ontem quando ele retornou de uma visita a parente próximo, seu olhar estava como se não fosse ele. Logo ao entrar fez-me perguntas as mais descabidas: “Por que esta cadeira está fora do lugar?” “Por- que esta porta dos fundos ainda não foi trancada?”
O que está acontecendo, Carlos? Estou lhe desconhecendo! Aonde você quer chegar? Perguntei-lhe muito serena.
Ele parecia aturdido. “Tenho sido um idiota!” – esbravejou o infeliz companheiro, completamente alucinado – “Aliás, não sou tão idiota assim! Embora já há quase um ano não lhe toco, isso não significa que eu não tenha companhias agradáveis na hora que bem quero! Olhe! Está assim de mulheres atrás de mim,” disse-me ele fazendo um gesto com as mãos.
Sem perder a calma tentei argumentar: raciocine, Carlos! Nunca lhe dei motivos para suspeitas infundadas.
Respirei fundo, pedi forças a Deus e disse-lhe suavemente: Venha se alimentar; estava à sua espera. A pancada da porta arremessada violentamente contra a parede do quarto foi a resposta dada, concluiu Luzia.
Seguiu-se um silêncio que não ousei interromper. Ali estava, ao meu lado, dentro do carro parado na porta da sua casa, a figura de uma nobre mulher. Seus olhos, ao contrário do que se poderia esperar, estavam secos. Uma paz irradiava do seu semblante estoico denotando uma indescritível sensação de dever cumprido.
Olhei o relógio, vinte e três horas e trinta e seis minutos. Meu Deus! – balbuciei assustada.
Entre! – ordenei-lhe resoluta. Fico temerosa do que lhe pode acontecer.
Ela parecia não temer mais nada. Eu, algo entorpecida, nada mais queria ouvir.
Desejei-lhe boa noite – como se isso fosse possível.
Saí rememorando a frase que, na minha adolescência, me encantava: “a vida é a arte do encontro, embora haja tantos desencontros pela vida” – de Fernando Sabino.
Através do vidro do carro, procurei a lua. Lá estava ela linda e cheia do mistério que tanto inspira os poetas.
Eu sabia que, em casa, alguém me esperava. Um ser que confiava em mim, irrestritamente. Antevia-o, braços estendidos a me dizer carinhoso: “Estava preocupado”.
Vi-me cantando alto dentro do carro, rua quase deserta, uma velha canção de Nelson Gonçalves que dizia a certa altura: “eu bebia, outro pagava e eu partia para o mundo abençoado do meu lar…”.
Senti-me feliz. Imensamente feliz. Mas enormemente envergonhada de ser feliz.

2 respostas

  1. Mais uma vez, sobressai-lhe a aptidão pela narrativa, Confreira Helena Ventura, apreciável talento que, confesso, desconhecia até a leitura do texto anterior.

    A propósito, também me traz saudosas recordações de, a um só tempo, feliz e desditoso amigo, a canção ” Hoje quem paga sou”, de Nelson Gonçalves.

    Eis a emblemática estrofe:

    “Eu sabia que era um estranho nesse meio
    Um estrangeiro na fronteira desse bar
    Mas bebia, outros pagavam e eu partia
    Para o mundo abençoado do meu lar”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Publicidade

Sites relevantes para pesquisa

Nós, do site Região Tocantina, queremos desejar, a todos os nossos leitoras e nossas leitoras, um FELIZ NATAL, repleto de fé, alegria, paz, saúde e felicidade.

E que as comemorações possam realçar nossos melhores e duradouros sentimentos.

FELIZ NATAL!

Publicidade