terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Moisés, o libertador…

Publicado em 19 de outubro de 2022, às 14:29
Fonte: Fabio Cardias – Psicólogo, Doutor em Educação e professor do Curso de Enfermagem do CCIm (Ufma Imperatriz).
Imagem: História do Samba. Domínio Público. Fornecida pelo autor.

Essa história me acompanha a vida inteira, e dela tiro lições importantes. Ao passo que o tempo passa, envelheço, ela ganha mais força. O personagem é real, o nome também, e nunca mais eu ouvi falar dele, nem tampouco ele soube da reverência que nutro por ele a vida inteira.

Moisés era seu nome, que nas romanizações pode ser Moshe, Mose, Musa… significa o filho, ou, como o próprio termo romanizado Musa, pode também significar o tirado das águas, o que nos faz lembrar das musas inspiradoras, encantadoras e entidades invisíveis das águas.

O lugar onde vivia Moisés e eu era o bairro do Tatuapé da década de 1980-1990, na zona leste de São Paulo, onde me criei. Ainda era uma época que, quando saímos para escola, logo ao amanhecer, a neblina cobria as ruas de branco, deixando visível somente um metro à frente e, conforme avançávamos, o caminho ia se mostrando de metro em metro.

Nosso personagem era um engraxate negro de 30 a 40 anos. Morava de favor embaixo de uma escadaria de um prédio, lugar muito pequeno. Usava o banheiro da padaria próximo ao prédio, quando precisava. Era visivelmente pobre materialmente, sujo às vezes, um negro que sofria racismo (recebíamos aqueles folhetos sobre o negro, aquele que só sobe na vida quando o barraco explode!) antes de falarmos em racismo estrutural na sociedade brasileira, pauta contemporânea.

O filho de Deus que era, tinha uma família da qual pouco se sabia. Muito tempo depois, ao voltar ao Tatuapé em viagem a SP, pura nostalgia, por volta do início dos anos 2000, ainda fui visitá-lo. O bairro ainda me incitava saudade do vivido na infância e adolescência. Moisés ainda estava lá, mesmo jeito, um engraxate e seu material de rua, abrilhantando os sapatos de homens brancos bem-sucedidos.

– Olá, Moisés! Tudo bem? (eu já com meus 40 anos)

– Fala garoto, como estás? Tudo jóia (como se lembrasse mesmo de mim e de minhas paradas com ele quando ia à padaria próxima de casa no Tatuapé daquela época; a padaria ainda existe!)

– Vou bem, e você? Ainda por aqui?

– Sim, é meu território, mas minha filha quer que eu vá ficar com ela, pois já estou velho demais (quando fui saber de sua filha)

– Eu estou bem, Moisés, agora vivo no Maranhão.

– Que bacana moleque… seja feliz!

A conversa foi nesse tom, rápida, mas me encheu de graça ao acessar memórias afetivas importantes e formativas da minha personalidade e negritude.

Das lembranças que vinham à minha memória, a mais forte sobre Moisés é quando ele subia a rua Tuiuti cantando alto madrugada adentro; a rua Tuiuti onde morávamos era uma ladeira enorme.

Moisés subia a rua pela madrugada cantando muito alto, e com sua voz rouca e maravilhosa, tipo a do cantor Seu Jorge de hoje (também ex-morador de rua), sambas antigos com letras maravilhosas.

Eu, criança púbere, acordava assustado com o som melodioso, que jamais poderia chamar de barulho. Somente eu, na noite, acordava de um sono profundo e não via mais ninguém desperto, curiosamente, para ir até a janela que dava para a rua ver Moisés cambaleando bêbado, mas bem equilibrado, um bamba no samba, com sua voz maravilhosa e um talento inestimável. Tudo me encantava na cena e no som!

Tal como o Moisés arquetípico da Bílbia, querido por judeus, cristãos e islâmicos, o Moisés preto do Tatuapé era uma pessoa querida no bairro de classe média branca e racista paulistano. O sambista da Tuiuti jamais fora repreendido por cantar nas madrugadas, de Donga a Adoniran, na calada da noite fria e cinzenta.

Ao menos para mim, essas lições de Moisés, o engraxate sambista, eram tão singelas e profundas, mais que as da escola ginasial oficial e formal. Reverbera sua voz, seu corpo sambando sozinho, sua elegância madrugadora, seu sorriso divino, sua realeza invisível, menosprezada, o tamanho de seu talento musical e artístico.

Assim era Moisés, o engraxate negro do Tatuapé. Quando soube de sua morte no final dos anos 2000, algo morreu em mim também, pois foi o meu primeiro libertador.

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