terça-feira, 15 de outubro de 2024

IMPESSOALIDADE, UMA ESTRANHA ENTRE NÓS

Publicado em 20 de setembro de 2022, às 19:57
Fonte: Denisson Gonçalves Chaves Professor do Direito, UFMA. Pesquisador do Núcleo de Pesquisas Jurídicas de Imperatriz (NUPEJI)
Imagem: Freepik

Dentre os princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito, nenhum deles parece tão estranho à sociedade brasileira quanto a impessoalidade. Ainda que juristas e intelectuais aclamem com toda pompa e respeito, trata-se de um conceito longínquo do pensar e agir de nossa terra. Os mesmos que elogiam a impessoalidade com a língua, lhe traem no coração e adulteram em suas condutas. Mas o que estaria por trás de tamanho estranhamento? Afinal, por que a impessoalidade nos causa admiração e ao mesmo tempo tanto espanto?

Na esfera social, a impessoalidade ganha muitos nomes, a depender do contexto: profissionalismo, objetividade, seriedade e até honestidade. Na esfera jurídica, ela tem um conceito determinado, disposto inclusive na Constituição, em seu art. 37, que ao tratar da administração dos bens públicos, diz: “A administração pública obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”.

No mundo jurídico, impessoalidade é cuidar dos bens públicos conforme a lei, que é geral, imparcial, abstrata e igual para todos. Significa deixar de lado preferências ou inclinações pessoais na administração dos recursos públicos. Esse significado, parte da noção prévia que existem as coisas privadas, que dizem respeito indivíduo e sua família, e as coisas públicas, relativas à coletividade. O princípio da impessoalidade relembra que cada contexto, público e privado, tem suas próprias regras e que é equivocado confundi-los. O termo confusão é importante e exato, pois denota que “con-fusão” significa união entre público e privado como sendo a mesma coisa, eis o problema.

Esse sentido jurídico é algo admirável, pois representa a essência do ideal de república. Em nós, brasileiros, esse sentido causa um sentimento de admiração, de respeito, algo protocolar e cerimonioso. Mas essa mesma admiração vem justamente de sua idealidade, da sua sacralização e, no fundo, de seu distanciamento. A impessoalidade assume aspectos de lei divina, feita apenas para se contemplar. Na verdade, a experiência cotidiana nos mostra que não suportamos a cruz de sermos impessoais.

A estranheza à impessoalidade nasce dentro do processo histórico de nossa formação, como diz Gilberto Freyre. Tem reminiscências aos elementos da Casa Grande e a da Senzala.

Na Casa Grande vivem o Senhor e seus familiares. A família sempre se protege. Ora, quem negará o que é bom aos seus? As regras da casa são o familismo, as concessões e os privilégios. O que é do pai é dos filhos, da esposa, dos irmãos etc. É por este motivo, que o nepotismo não escandaliza o brasileiro. O que lhe espanta é o contrário, um parente não beneficiar o outro. Se um Presidente usa o aparelhamento estatal para proteger seus filhos de investigações criminais, isso é interpretado pelo brasileiro como “amor paterno”; se um prefeito usa a máquina pública para inserir sua esposa ou filhos no processo eleitoral, isso é tido como “garantir os seus”. Mesmo que a lei considere tais atos como crimes e que o brasileiro esbraveje respeitar a lei, ele considera mal maior deixar de “proteger” sua casa (família e amigos) para ir à rua (o povo).

Já na Senzala, tudo e todos são posse do Senhor da casa. Tudo está sob o domínio do dono, as coisas e as pessoas. O público não tem face – quem não tem cara, não tem quinhão. O público é ao mesmo tempo de todos e de ninguém.

Essa lógica da senzala, onde tudo pertence ao Senhor, permeia nosso imaginário, por isso, quando um servidor público toma para si recursos e bens públicos, consideramos isso algo normal. Isso se aplica tanto a um Presidente, que decreta sigilo sobre os gastos com seu cartão funcional por um século, como ao servidor público da prefeitura, que usa o carro da repartição para buscar os filhos na escola ou ir ao futebol, nas quintas-feiras à noite. Que brasileiro nunca imprimiu coisas pessoais no local de trabalho (público ou privado) que atire a primeira pedra?

Estamos muito preocupados – e com razão – se ainda somos uma democracia. Mas me parece que nunca chegamos a ser uma República de fato. O espírito republicano que Rui Barbosa tanto almejava e elogiava, está mais para um fantasma da casa do vizinho ou ainda aquelas entidades angelicais que aparecem nos sonhos idílicos. Sem impessoalidade, não há república. Sem república, resta apenas o Senhor, os escravos, a Casa Grande e a Senzala, cuja lei máxima é: “aos inimigos, a lei; aos amigos, tudo”.

No entanto, não precisamos ser deterministas ou fatalistas, negando qualquer possibilidade de mudança. É possível sim melhorar. A Constituição está aí como guia, ditando-nos bons caminhos: igualdade, legalidade, impessoalidade… A Constituição não é apenas um texto jurídico, ela também é uma expressão política e social de um povo. Assim, ela é ao mesmo tempo utópica, direcionando-nos a um ideal; e normativa, corrigindo-nos no real. Observando a Constituição, talvez consideremos a impessoalidade algo menos estranho à nossa história.

Uma resposta

  1. O sábio Jiddu Krishnamurti dizia que é o interesse pessoal a raiz da corrupção.

    Desse modo, somente quando os governos forem entregues a técnicos e computadores será extinta essa mazela.

    Pela simples razão de que técnicos (enquanto técnicos) e computadores não têm família, partido nem amigos.

    Assim, estão aptos a gerir o interesse público consoante critérios científicos, meramente matemáticos, estatísticos.

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