Ouvi falar de Torto Arado, romance do baiano Itamar Vieira Júnior, logo nos primeiros meses do ano passado. Nessa época, nas redes sociais, pululavam postagens sobre o livro, culminando com a exitosa passagem do autor pelo conhecido programa Roda Viva, da TV Cultura.
Na época, fiquei bastante curiosa para ler a obra, mas achei melhor deixar passar um tempo, para poder ler o livro com um certo distanciamento e tentar construir uma opinião livre do burburinho em torno dele. Acabou que a vida me ajudou no quesito passagem do tempo, já que só agora consegui lê-lo.
Logo nos primeiros capítulos, chamou-me a atenção a força dos símbolos, sobretudo o valor da metáfora do silenciamento e seu emprego ao longo de todo o romance. Além de uma direta relação com os temas tratados no livro, e com a natureza das vozes que nos contam as histórias, esta metáfora também reflete o espírito político e social da época que estamos vivendo.
As duas irmãs, protagonistas do romance, estão tão imbricadas em suas vivências e sentimentos que, por muito tempo durante a leitura, sem me dar conta, troquei a imagem e a voz de uma pela outra, a ponto de não saber dizer quem havia de fato sofrido o quê. Esse efeito, estou segura, resulta da forma e escolha elaborada da linguagem, prova mais que evidente do trabalho artístico do autor com o texto deste romance.
Do ponto de vista pessoal, a história me pareceu tão familiar que não consegui deixar a leitura até ter chegado ao final do livro. Fui transportada para o interior do Maranhão e cheguei a ver imagens – nada românticas – dos casebres e das mulheres curtidas pelo trabalho, porém eretas, com as crianças escanchadas na cintura e uma lata d’água ou pote na cabeça. Imagens que são resultado de coisas que vi, vivi ou que me contaram ao longo da vida. Em minha memória e em meu pensamento sempre estão as mulheres e sua luta, porque são elas que sustentam o mundo, apesar das violências terríveis que sofrem.
Na entrevista que o autor concedeu ao Roda Viva ele contou que muito do que está no romance foi inspirado pelo tempo em que passou trabalhando no interior da Bahia e do Maranhão, o que explica muito da familiaridade que senti ao ler o texto: aquele não era um mundo novo para mim. É um mundo que está no que conheço e nas histórias que meus antepassados me contaram: da exploração e da violência que sofreram, mas também das crenças, dos encantados, das festas de santos, dos rituais que foram sendo passados de geração em geração.
Durante grande parte da leitura, só consegui sentir muito ódio de quem suga a vida e o trabalho dos outros, de quem enriquece às custas da escravidão de muitos, seja da escravidão literal, num sistema que obriga a pessoa a trabalhar sem salário e sem direito a nada, em troca, no mínimo, de um pedaço de terra (alheia) para fazer um casebre e poder plantar uma horta; seja a escravidão mascarada, aquela em que a pessoa trabalha em troca de um salário que não cobre nem 1% das necessidades básicas, e ainda tem que gastá-lo comprando produtos encarecidos nas lojas do empregador. E quando não pode pagar por eles, a pessoa é obrigada a fazer dívidas que nunca conseguirá quitar e que só poderá amortecer, supostamente, em troca de trabalho e mais trabalho, pelo resto da vida, até morrer sem direito a sequer uma cova. Isso não acontece só no campo, os trabalhos precários nas cidades são o mesmo tipo de escravidão que vemos no livro.
No romance, assim como na vida real, os políticos e os donos do Capital só cuidam de seus próprios interesses, e a polícia é só mais uma serva deles. Os policiais, para nosso espanto, nem cogitam que são tão escravos quanto as pessoas escravizadas que eles ajudam a oprimir. Tsc, tsc, tsc…
O tempo também tem um papel importante nas histórias de Torto Arado, já que tanto se aplicam a situações que ocorreram no passado, como a situações que seguem ocorrendo no presente, e têm tudo para continuar ocorrendo no futuro, caso as populações não aprendam urgentemente a se politizar e a exigir seus direitos.
Pra mim, Torto Arado é um livro “engabiteiro” que, com seu falar calmo, assim como quem não quer nada, soube tratar da realidade atemporal do que acontece no campo, nas periferias das cidades e nas periferias do capitalismo, sem se furtar a mirar criticamente o papel das religiões – qualquer uma delas – na manutenção dos sistemas escravocratas.
Só por isso o livro já mereceu todos os prêmios que ganhou até aqui. Para questões mais literárias e outras curiosidades sobre a obra, recomendo a entrevista que Itamar Vieira Júnior deu ao professor Leandro Karnal no canal Youtube: Prazer, Karnal.
- No Maranhão, “engabiteiro” ou “engabiteira” se usa quando se quer dizer que algo ou alguém é cativante.
P.S.: Terminei de ler este livro com uma saudade danada no bucho: comer doce de buriti e também tomar o suco!
2 respostas
Que delícia de texto. Eu também adiei a leitura (ainda sem ler), mas já está na minha estante. Vou começar pela entrevista. Grata
Adorei, o seu comentário acerca desse precioso trabalho literário de I
tamar Vieira- Baía! Itamar Dias Fernandes