A escritora Lindevania Martins tem uma carreira literária bem-sucedida. Com trajetória iniciada em 2003, já como ganhadora do Concurso Literário Cidade de São Luís, ela publicou os livros: Anônimos (2013), Zona de Desconforto (2018), Longe de Mim (2019), Fora dos Trilhos (2019) e o mais recente, Teresa Decide Falar (2022), que ganhou o Prêmio Cepe de Literatura, um dos mais importantes da atualidade. Poeta, Contista, Lindevania, que é defensora pública, escreve para dar voz a personagens que ela quer ver insubordinados, protagonistas das próprias histórias. Nesta entrevista, ela fala do seu processo criativo, do universo dos seus livros e do papel da literatura. Confira.
Região Tocantina – Como começou sua carreira literária?
Lindevania Martins – Difícil responder. Se a pergunta fosse quando começou minha carreira de Defensora Pública seria fácil, não é? Com a assinatura de um documento. Quanto à carreira literária, comecei escrevendo em silêncio e em solidão, sem propósito definido, apenas para mim mesma. Elaborava personagens que tentariam ver o mundo de outro ponto de vista que não o meu e que por isso poderiam, de repente, me ensinar algo novo. Criava mundos de fantasia para compensar o que eu não podia experimentar na minha realidade. Como nunca tive certeza se o que fazia era literatura, em 2003 resolvi testar essa escrita selecionando um conjunto de contos para montar um livro e inscrevendo essa obra no 27o. Concurso Literário e Artístico Cidade de São Luís. Assim nasceu meu primeiro livro, que se chamou “Anônimos: invenções de amor e de morte”, e ficou em primeiro lugar naquele concurso literário. Talvez possa localizar aí o começo de tudo.
Região Tocantina – Qual é, para você, o grande papel da literatura?
Lindevania Martins – Gosto de pensar que o grande papel da literatura é o de desestabilizar as certezas ao permitir que o leitor penetre profundamente no corpo e na mente de uma personagem de ficção, experimentando estar no mundo a partir de outro lugar. Ou seja, vivenciar a alteridade e exercitar o senso crítico. Se na vida cotidiana isso é muito difícil, enraizados que estamos na própria pele e nos nossos próprios interesses, somos levados a essas experiências pelo texto de ficção e pela poesia quase sem perceber. Acho isso incrível e creio que esse efeito do texto literário implica em ricas possibilidades de afeto e de encontro com o outro, ainda que o outro seja muito diferente de nós.
Região Tocantina – Qual é a temática central do seu trabalho?
Lindevania Martins – Cada vez mais percebo que meu trabalho gira em torno das identidades e das possibilidades de diálogos. Quem somos no mundo? De que forma o lugar que ocupamos molda quem somos? É possível uma comunicação plena com o outro? Que tipo de alianças podemos realizar? Qual o papel da linguagem? E esses questionamentos ocorrem em cenários que possuem como protagonistas personagens oriundos de estratos considerados subalternos: mulheres, pobres, negros, lgbts. Mas esses questionamentos surgem sobretudo de minha história pessoal. Já contei algumas vezes sobre as alucinações visuais e auditivas na minha infância e da dificuldade de falar sobre essas experiências porque para muitas delas me faltavam palavras. Até hoje faltam. E como comunicar algo que eu não consigo nomear?
Região Tocantina – Para você, a literatura tem papel de mudar a realidade?
Lindevania Martins – A literatura e arte não são neutros e são influenciados pelos contextos nos quais estão inseridos. A realidade é uma coisa dinâmica, puro fluxo de mudança. Nesse sentido, a literatura tanto pode ajudar a alterar a realidade, para melhor ou pior, quanto pode tentar fixar e conservar um mundo imóvel. Contudo, creio que o ato de criação sempre contém sementes de subversão, ao desafiar os automatismos e a estabilização das mentalidades, produzindo fluxos que ajudam a construir outras possibilidades. E para isso, é essencial para todo escritor ou artista poder elaborar seus trabalhos com algum grau de liberdade.
Região Tocantina – Nas suas histórias, qual é o papel das mulheres?
Lindevania Martins – Experimentar a insubordinação. Os corpos das mulheres aparecem principalmente como corpos em rebelião. Sejam elas pequenas ou grandes. Gosto que as mulheres em meus textos possam ter voz e postura ativa. Sei que muitas vezes isso não acontece no cotidiano, especialmente pela minha experiência como defensora pública da mulher e população LGBTQ+ em que lido com diversos tipos de violência, inclusive feminicídios. Mas faço coro com a poeta Wisława Szymborska que descreve, no poema “A Alegria da Escrita”, os poderes da ficção. Não quero reproduzir uma realidade que nos limita, seja em nossos corpos, seja em nossas mentes. Quero ajudar a construir novas sensibilidades.
Região Tocantina – Até onde, como escritora, você já chegou e aonde ainda quer chegar?
Lindevania Martins – Sempre penso nessas questões: aonde quero chegar escrevendo? Estou no caminho? Por vezes me parece que cada texto é como uma garrafa de náufrago: uma isca. Por que a gente escreve? Creio que qualquer texto deseja ser uma ponte esticada entre autor e leitor. Um convite para uma aproximação. Para superar as distâncias entre nós. Para construir algo em comum. Sinto uma necessidade íntima de escrever. Continuo sentindo. E tenho escrito muito sobre isso em contos que parecem tratar de outra coisa. Creio que o lugar ao qual quero chegar, como escritora, é esse no qual não precisarei mais escrever. Em que uma inquietação em mim vai encontrar paz e não precisarei mais escrever. Disse isso em um poema: “ainda quero esse silêncio sem medida/que é da grande paz a ser fundada/no dia que coincidirei comigo”. E quando digo isso não me refiro à morte. Mas às possibilidades de transbordamento que existe em cada vida.
Região Tocantina – Que outras histórias você pretende ainda contar?
Lindevania Martins – Quero contar histórias que me ajudem a respirar. E agora compreendo que esse movimento narcisista pode ser importante para outros também.