Os juristas praticam o direito na maioria das vezes sem saber o que ele é,ou seja, sem ter claro em sua consciência a delimitação do conceito de direito. Isso pode parecer absurdo a uma primeira análise, mas é algo costumeiro na vida cotidiana. Muitos profissionais realizam seus ofícios sem saberem aspectos conceituais de seus trabalhos. Perguntemos a um fotógrafo o que é uma foto, ou a um eletricista o que é eletricidade e comprovamos essa realidade.
Grande parte dessa idiossincrasia se dá pelo fato de que presume-se que cabe ao cientista social se preocupar com conceitos, não ao jurista, que é um técnico “aplicador”. O problema é que especificamente no ramo jurídico, o que se entende por direito será decisivo no modo como se faz o direito. É algo indissociável. Mesmo aquele profissional que diz não se preocupar com tais questões teoréticas, em seu labor, corporifica uma visão de direito que lhe intrínseca e ao mesmo tempo, lhe é oculta, seja por ociosidade ou despretensiosidade intelectual.
Por sua vez, o conceito de direito está ligado diretamente a um aspecto finalista do que se espera dele na vida social. Conceituações ontológicas, que buscam responder o que é direito em sua “essência” são válidas, porém desconexas com as necessidades do mundo atual. O conceito de direito deve responder a questão: qual a sua função na sociedade? ou melhor: para quê serve, a quem serve e de que maneira ele pode servir para alguma coisa? Não se quer aqui defender uma visão pragmatista e instrumental, mas a necessidade do profissional pensar os fins do direito, para então, saber seus limites.
Essa questão do conceito do direito já foi (e continua a ser) pensada por várias escolas teóricas. Os chamados jusnaturalistas defendem que o direito é um atributo natural do homem em sua vida social e que sua função estaria na proteção de outros atributos intrínsecos aos seres humanos, os quais chamam de direitos naturais. Os positivistas consideram que o direito é produto da vontade humana para proteção de bens (materiais e imateriais) que nos são caros e sua função é a organização racional da sociedade por meio da autoridade da ordem estatal constituída. Existem ainda os juristas críticos que argumentam que o direito é uma criação humana que pode funcionar tanto para a dominação, quanto para possível emancipação dos marginalizados. Esses são apenas três exemplos de escolas, existem várias teorias sobre o conceito e finalidade do direito.
Essa variedade de escolas jurídicas aponta para relevância que tem sido dada ao tema ao longo dos anos. Todavia, o direito tem ganhado protagonismo nas discussões sociais principalmente após a Segunda Guerra Mundial. Os eventos históricos das duas Grandes Guerras e as mobilizações pelos direitos civis e políticos entre as décadas de 60 e 80 marcam a centralidade no direito na vida das pessoas. Questões básicas como pegar um ônibus, beijar alguém ou falar certas coisas em público, tornaram-se pautas jurídicas, administradas pelo direito. O filósofo alemão Jürgem Habermas nomeia este acontecimento de “colonização” do mundo pelo direito. Franz Neumann, ainda na década de 30, chamava este processo de “juridificação” da vida.
Essa colonização ou juridificação alimenta um delírio muito presente entre os juristas atuais de que o direito é um remédio universal para todas as mazelas existentes. É um processo que pode ser chamado de deificação do direito, extasiado pela ideia de um sistema onipresente, onipotente e onisciente. Anima os corações dos jovens estudantes a impressão mítica de que, para cada problema social, existe uma resposta jurídica passível de aplicação, seja por meio da criação de uma lei (legalização) ou pela via das decisões dos tribunais (judicialização). Nesse cenário de divinização, a pergunta sobre o que é o direito perde sentido. A resposta parece óbvia: o direito é tudo! e não se pode conceituar e delimitar “o tudo”.
Assim, o retorno à questão do conceito de direito é um refreio a colonização com caráter sacral. Se deixamos de buscar pelo conceito, deixamos de buscar pela função do direito e, consequentemente, pela reflexão sobre seus limites. São os limites do direito que tornam ele obra dos homens e não dos (falsos) deuses. Eles revelam que, como toda obra humana, está sujeito a falhas, insuficiências e lacunas. Mas é justamente pelas suas carências que podemos explorar os potenciais do que o direito pode vir a ser.
Por isso, acredito que todo intérprete-aplicador das normas jurídicas (advogados, magistrados, promotores, estudantes etc) deve continuamente se perguntar: o que é o direito?
Talvez, isso lance luz para uma pergunta não menos importante: o que fazem os juristas?
Depois dessas reflexões, veremos que os deuses também sangram.