Demorará um pouco ainda para que possamos ter uma noção mais clara do que foi a vida durante os piores momentos da pandemia do corona. É bom lembrar que a dita cuja ainda não acabou, mas que em muitos lugares do mundo, por conta do efeito da vacina, uma vida quase “normal” voltou a ser possível. E eu ponho a palavra normal entre aspas porque talvez nunca se tenha questionado tanto o que seria essa “normalidade”, ainda mais em tempos de fome e guerras. O fato é que, após viver coisas terríveis, a tendência é passar a perceber coisas mínimas com mais intensidade.
Em abril, por exemplo, visitei uma exposição intitulada The World of Music Video (O mundo do videoclipe, numa tradução assim bem rápida). Para mim, foi uma experiência despertante, e foi a primeira que visitei após longo tempo sem poder ir a museus ou galerias. Passear por um local gigante, fechado, escuro, e até meio fétido, com cheiro de graxa, – o ambiente de uma antiga siderúrgica transformada em local de exposição – e ao mesmo tempo me ver rodeada por telões, exibindo videoclipes de quase todo o mundo e, vez ou outra, poder tirar os fones de ouvido e não escutar nenhum som, apenas ter, diante dos olhos, uma narrativa visual arbitrária, única no tempo e no espaço, isso tudo produziu em mim sensações que eu, simplesmente, não consigo descrever. Sobretudo me causou um despertar, um clique, um plop, uma sensação de desplugar e de me ver livre da matrix por um tempo – ou apenas a sensação de estar mais consciente das coisas que nos cegam, prendem e iludem.
Para visitar a instalação, cada visitante recebia um fone de ouvidos e um aparelho do tamanho de um celular. O aparelho tinha um sensor e ia trocando de música diante de cada telão, ou telinha, e até isso causava uma diferença enorme no efeito que as imagens e os sons dos fones, que nem sempre coincidiam com as imagens, produziam nos visitantes.
Passear por essa instalação recebendo estímulos de todos os lados, dos sons e das imagens, e também do silêncio experimentado, quando se tirava os fones e se ficava a observar as reações dos outros visitantes, isso foi algo que me fez questionar muitas coisas, sobretudo o nosso jeito de ser, estar e vivenciar este mundo. Sem esquecer que, naquele exato momento, em diversos lugares do planeta, guerras, torturas e mortes por causa da fome seguiam acontecendo. E pensar que grande parte das pessoas no mundo vê essas atrocidades como algo normal – ou pior ainda: não consegue percebê-las como atrocidades, isso sim, é algo pavoroso!
O que experimentei nessa exposição foi um emaranhado de sons, pensamentos e imagens, as imagens de um vídeo combinado ao som de outro. E para quem compreende outros idiomas, a experiência poderia ser até mais intensa, por conta do que estaria sendo cantado, gritado, sussurrado, ou só exibido a cada momento.
A arte tem esse poder fantástico de direcionar nossa atenção para as coisas invisíveis. Num país como o Brasil, no qual o acesso às artes está cada vez mais reduzido, como se o povão não tivesse o direito de ter certas experiências artísticas, muito do que estou contando neste texto pode não fazer sentido, por serem experiências apartadas da vida dura de muitos, que é uma realidade de fome e desespero, como já dito.
Mas é exatamente isso que a arte nos ensina: que quanto mais estamos com fome e confusos, e cegos e sem esperança, que esse é o momento de dar uma de doido e parar, pegar um pedaço de giz ou de carvão e ficar pintando o sete nos lugares, e calibrar os ouvidos para tentar captar o que está por trás da confusão e da loucura, do caos, da exploração, das demagogias e mentiras, enfim: a arte é um tipo de antídoto contra tudo o que tenta nos transformar em zumbis. Por isso é que, no meio do caos diário, para sobreviver, é mais do que necessário cavar um tempo para pintar o sete e espantar os males, cantando coisas do tipo:
“Vem cá, meu bem, que é bom lhe ver
O mundo anda tão complicado
Que hoje eu quero fazer tudo por você.”
Trecho da canção O mundo anda tão complicado, Legião Urbana.