Conhecer o passado dos personagens é importante para compreendermos o seu presente e futuro e uma cena mostrando eventos anteriores se mostra muito mais eficaz do que vários parágrafos de uma longa e interminável explicação. O flashback, nesse sentido, é uma técnica narrativa importante para dar contexto aos personagens e eventos importantes da trama.
O que é?
O termo “flashback” significa “voltar rapidamente para algo”, ou seja, é um fato acontecido no passado inserido em um momento atual. Em termos narrativos, o flashback é uma técnica em que uma ação narrativa é interrompida momentaneamente para mostrar uma situação do passado que está relacionada com o contexto narrativo presente.
Exemplos na ficção
Os flashbacks são usualmente utilizados por autores para se aprofundar ainda mais na história de determinados personagens ou mesmo para dar contexto histórico acerca de eventos importantes. Na maioria das vezes, os flashbacks servem como técnica narrativa para dar aprofundamento a certos personagens e são utilizados na intenção de dar um “arco de redenção” a vilões e anti-heróis, normalmente antes ou após a morte do mesmo.
O anime e mangá de “Naruto”, escrito por Masashi Kishimoto, é famoso pelo uso dos flashbacks como técnica de roteiro para redimir seus vilões, quase todos encontrando seu caminho para “bem” após discursos motivacionais do protagonista. O passado trágico da grande maioria dos vilões de Naruto servem para fazer com que o público entenda suas motivações, mesmo que distorcidas, e se compadeça de suas ações. Personagens como Pain, Neji, Gaara e Sai são alguns dos exemplos de personagens que tiveram seus passados tristes explorados momentos antes de serem convertidos para heróis. Enquanto Itachi teve seu passado trágico explorado momentos após sua morte, o revelando não como um vilão como todos deduziam, mas um verdadeiro herói.
Em “Harry Potter e as Relíquias da Morte”, Severo Snape encontra seu arco de redenção através dos flashbacks quando o professor dá a Harry suas próprias lembranças e o herói descobre que Snape sempre fora apaixonado por sua mãe, Lílian Potter, e que prometeu protegê-lo e têm trabalhado como duplo espião e arriscado sua vida para manter sua promessa.
Outro exemplo do uso de flashbacks na saga Harry Potter acontece no sexto livro, “Harry Potter o Enigma do Príncipe”, em que a técnica é usada para explorar o passado de Voldemort, mas nesse caso a intenção é dar aprofundamento ao vilão e suas motivações e não dar ao antagonista um arco de redenção. Nesse sentido, o flashback é usado para nos dar contexto histórico e assim entendermos como funciona a mente do vilão.
Já quando se trata de eventos passados envolvendo os heróis e mocinhos da história, os flashbacks servem em sua grande maioria para explorar seus traumas. Esse aprofundamento mostra-se importante para entendermos a complexidade dos personagens e as decisões que eles vão tomando ao longo da narrativa, sejam elas politicamente corretas ou, em sua maioria, controversas.
Em “O Duque e eu”, primeiro livro da série “Os Bridgertons” da autora Julia Quinn, a narrativa começa com um flashback narrando eventos importantes da infância de Simon Basset e sua conturbada relação com seu pai, o até então Duque de Hastings, servindo como técnica narrativa para explorar o trauma do protagonista e assim entendermos suas decisões controversas ao longo da trama.
A série “Percy Jackson e os Olimpianos” é famosa por explorar seus flashbacks através dos sonhos do protagonista em que Percy consegue ver vislumbres de eventos ocorridos nos mitos gregos. Em “A Maldição do Titã”, a personagem Zoë Doce-Amarga é mostrada tendo uma grande implicância e rivalidade com Percy desde que são apresentados, é somente quando Percy sonha com eventos passados que finalmente entendemos o porquê de Zoë antipatizar tando com o protagonista. Há muito tempo, Zoë havia conhecido Hércules e o ajudado na empreitada de colher um pomo de ouro do Jardim das Hespérides, então protegido pelo dragão Ládon, tendo dado como presente ao herói uma espada, a Anaklumos, que mais tarde seria de Percy. No entanto, após ajudar o famoso herói, Hércules a trai e a abandona para trás para lidar com as consequências da sua traição, já que ela era uma das hespérides que deveria vigiar e proteger o jardim, assim Zoë é expulsa de sua casa. Após a traição de Hércules, Zoë nutre desprezo por qualquer herói do sexo masculino, pois não os consideram dignos de confiança. Ao ver a espada que deu para Hércules com Percy, ela o vê nada mais do que uma representação do antigo herói que a traiu, mas após completar juntos a jornada para resgatar Artemis, Zoë momentos antes de morrer acaba reconhecendo Percy como alguém digno de sua confiança e de sua espada: “Estás certo, tu não és como Hércules. Estou honrada que você carregue esta espada”.
Os flashbacks também podem ser usados para adicionar um tom de suspense para a trama e muitas vezes são usados nos prólogos de muitas histórias. Seja uma cena sobre um corte do passado de algum personagem ou até mesmo um pequeno detalhe para dar aquele “gostinho” ao leitor, que só irá entender aquela informação muitas vezes apenas ao fim da narrativa.
Na quadrilogia “Sussurro”, escrita por Becca Fitzpatrick, em sua trama de fantasia angélica, a autora optou por utilizar de flashbacks já no prólogo do primeiro livro, onde temos uma cena misteriosa que envolve o passado de Patch e Chauncey e como ambos se conheceram há séculos atrás, dois personagens muito importantes no decorrer da trama, mas que só são apresentados posteriormente para a protagonista e o leitor. Becca repete esse recurso nos demais livros, utilizando do flashback para inserir o leitor no tom misterioso e suspense que a história carrega.
As histórias de suspense também podem fazer uso dos flashbacks a fim de dar a sensação de quebra da narrativa e, com isso, preparar o leitor para o grande clímax e as revelações que estão por vir. Isso acontece por exemplo em “A Última Festa”, de Lucy Foley. A trama acompanha um grupo de amigos de longa data que se reencontram e ficam presos em um local afastado quando acontece um assassinato misterioso. Eles se veem obrigados a suspeitar um do outro e relembrar antigas inimizades e conflitos que pareciam ter ficado apenas no passado. A partir disso, o leitor acompanha a trama no presente e flashbacks alternados entre personagens, como Emma e Heather, explicando o passado dos personagens a fim de fornecer pistas que serviriam como motivações para que todos eles possam ser suspeitos do crime. Aqui, a cada página, o leitor passa a suspeitar de um determinado personagem e na página seguinte, sua perspectiva já muda, apenas através do uso dos flashbacks, onde somos apresentados a novas revelações.
Sendo muito popular recentemente, as histórias conhecidas como “romance dark” possuem uma trama mais densa e profunda, tendo a fama de não funcionarem com um público mais sensível. Por conta desse detalhe, o flashback acaba sendo quase que obrigatoriamente usado pelos autores para explicar determinados comportamentos de alguns personagens. Isso ocorre, por exemplo, na série “Corrupto”, escrita pela autora Penelope Douglas. A história se passa em quatro livros onde o leitor acompanha a história dos “Quatro Cavaleiros”, quatro rapazes de famílias influentes que são conhecidos na cidade por usarem máscaras e fazerem o que quiserem sem serem punidos. Michael (o protagonista masculino e primeiro dos Cavaleiros) deseja se vingar de Rika (a protagonista feminina) uma garota que ele acredita ter sido a responsável pela prisão de seus três melhores amigos anos antes. Por conta disso, o livro alterna entre o presente e o passado através de flashbacks que mostram Rika e os Cavaleiros anos antes, como se conheceram e todos os detalhes que fazem Michael pensar que ela está envolvida na prisão dos seus amigos, além de é claro, dar pistas ao leitor de quem será o verdadeiro culpado ao fim da trama.
Os flashbacks também podem ser um recurso narrativo que funciona muito bem em histórias de fantasia, principalmente quando há uma trama com muitos detalhes e que envolve um passado conturbado e traumático dos personagens. Em “A Maldição do Tigre”, de Colleen Houck, somos apresentados ao passado trágico dos príncipes Ren e Kishan, que foram amaldiçoados em tigres por um feiticeiro ambicioso. É através do amável personagem Sr.Kadam que conhecemos sua história e, principalmente, todo o sacrifício do próprio Kadam, que revela para a protagonista Kelsey ter abdicado toda sua vida para se dedicar a achar uma brecha ou alguém que salvasse os príncipes da maldição. A autora ainda utiliza o flashback em um momento de clímax da trama, onde, além de conhecermos todo o passado dos príncipes, ainda somos obrigados a acompanhar o grande sacrifício final do personagem para salvar os protagonistas.
Ainda se tratando de flashbacks em histórias de fantasia, a saga “Acotar”, de Sarah J. Maas, queridinha do momento, nos apresentou Rhysand somente no fim do primeiro livro, e o personagem ficou por um certo tempo com uma aura enigmática em torno dele. A própria protagonista Feyre não gostava muito dele a princípio, sendo levada a crer que ele era um ser sombrio e egoísta e que ela deveria ficar longe dele. Com a revelação da vilã Amarantha e toda a maldição e guerra que ela queria trazer para o mundo humano, a partir do segundo livro ela passa a se aproximar dele e a conhecê-lo melhor. Feyre então descobre mais sobre a guerra entre humanos e feéricos a partir de flashbacks contados por Rhysand e tudo que ele foi obrigado a passar para impedir que uma guerra começasse. Ele conta a ela como teve que se sujeitar à Amarantha, a esconder a localização de sua corte e fingir há anos ser fiel à ela, tudo para proteger não somente o seu povo, mas também os humanos.
Dar contexto a determinados eventos, torna-se essencial para dar profundidade a história e seus personagens. Nesse sentido, o flashback se mostra uma técnica narrativa que ao ser usada permite nos aprofundar nos personagens, visto que, somos apresentados a eventos do seu passado, e assim se tornam um meio eficaz para entendermos suas motivações e até mesmo sua personalidade. Podendo também serem usados como método para narrar “eventos históricos” dentro da linha cronológica da trama como cenas de batalhas épicas ou traições que acarretam numa mudança bruta dos acontecimentos da História.
Os Flashbacks em “A Piromante de Lumiére”:
O uso de flashbacks como técnica narrativa mostra-se importante quando queremos explorar as motivações de determinados personagens e os motivos que os levam a tomar certas decisões. Em “A Piromante de Lumiére”, somos apresentados a um personagem que desde o início levanta questionamentos sobre sua lealdade. Ryan Midnight é mostrado como membro da organização que está caçando a protagonista e logo o identificamos como vilão, mas em seguida descobrimos que ele trabalha para outra pessoa e em muitas situações parece preocupado com a mocinha e até a ajuda em outros momentos. É somente no capítulo “O Semideus Condenado” que somos apresentados ao passado do personagem e os motivos que o levaram a fazer parte da organização criminosa que está atrás da mestiça de fênix e humana, Kimberly Cassidy.
O capítulo intitulado “O Semideus Condenado” é inteiramente um flashback que narra um evento do passado que marcou para sempre o personagem Ryan Midnight e o condenou a uma vida de servidão dedicada ao deus dos mortos, Hades. É a partir deste capítulo, em que descobrimos sua verdadeira lealdade a Hades, que entendemos o porquê de Ryan não concordar com algumas ordens que recebe da Ordem de Legionários ao qual tecnicamente pertence. Com o desenrolar da trama as ações ambíguas do personagem,às vezes ajudando a protagonista e às vezes ferrando com sua vida, vão sendo cada vez mais atreladas ao seu passado com Hades.
A narrativa de “A Piromante de Lumiére” também faz uso de flashbacks como técnica de roteiro para abordar a infância e a adolescência da protagonista. Embora a trama inicie com o aniversário de 18 anos da heroína, Kimberly Cassidy, em determinado ponto da trama quando a protagonista perde todas as suas lembranças, os flashbacks aparecem como recurso para recuperar não apenas as memórias que envolvem momentos importantes desde o capítulo inicial, mas também para trazer à tona momentos da infância e da adolescência de Kim.
Essas memórias do passado de Kim, que antecedem seu aniversário de 18 anos, são importantes para abordar a amizade da heroína com um rapaz humano, Simon Cárter, que é seu amigo desde a infância, e como a amizade de ambos moldou a personalidade de ambos. Além disso, cenas de sua adolescência se tornam importantes para explorar o descobrimento de sua sexualidade como bissexual e como isso afetou os relacionamentos de Kim com as pessoas à sua volta.
Assim, pode-se dizer, que os flashbacks acabam sendo essenciais para dar contexto e aprofundamento em seus personagens, tornando-o uma técnica eficaz para fazer com que o público entenda suas motivações e se sintam cada vez mais próximos dos personagens e passem a gostar cada vez mais deles.
Os Flashbacks em “Território de Fúria”
À medida que a protagonista Valerie se aprofunda nas investigações sobre as circunstâncias misteriosas nas quais o mentalista Aidas foi assassinado — e bem na sua frente — ela acaba se deparando com algumas coisas sobre seu passado que ajudam a montar o quebra-cabeça que possam levar a pistas sobre sua morte.
Muitos dos flashbacks acabam envolvendo pequenos detalhes sobre alguns aspectos da vida de Aidas, sendo intercalados em momentos chave da trama. O próprio personagem tinha uma vida misteriosa e pouco agitada pois, sendo espião particular de Cade, ele estava sempre medindo seus passos. Os flashbacks acabam sendo usados para explicar pistas que a protagonista acaba encontrando no decorrer da trama.
Em vários momentos, Valerie acaba se questionando como alguém como ele poderia ter sido assassinado pois, por mais que ele fosse um espião e mantivesse uma rotina conturbada, ela acaba encontrando pistas que, a princípio, parecem vagas e sem motivos suficientes para servirem como motivação para o crime. Porém, esse é um detalhe que, por conta dos flashbacks, ficam reservados apenas ao leitor, uma vez que a própria protagonista, assim como os demais personagens, só irão se deparar com as respostas definitivas ao fim da trama.
Como se não bastasse, essas mesmas conclusões acabam não sendo “respostas definitivas”, pois como em um quebra-cabeça, uma coisa acaba se conectando a outra e levando a uma nova perspectiva. Por ser uma trama de suspense e mistério, o flashback acaba funcionando como uma forma de levantar novas questões e suspeitas, detalhes que acabam servindo para uma nova trama em um livro seguinte.
Dicas para o uso de flashbacks:
- Não é somente sobre mostrar o passado de algum personagem. O flashback deve servir como fonte de informação para um elemento importante da história.
- Deixe claro que aquele parágrafo é um flashback ou dedique um capítulo, ainda que pequeno, para ele, para não confundir o leitor. Faça uso das letras em itálico, por exemplo. Observe como outros autores fazem.
- Lembre-se que o flashback pode ser usado para dar um “suspense” para a história, colocando-o no prólogo, mas apenas se fizer sentido para a história.
- Tenha o cuidado de delinear a linha cronológica da sua história e determinar quando e onde aquele flashback está ocorrendo para assim não confundir o leitor ou cometer um furo de roteiro.
- Evite usar o flashback somente com o propósito de criar um “arco de redenção” para determinado personagem somente para logo em seguida matá-lo. Antes de criar um flashback com esse propósito, certifique-se de deixar pistas ao longo do enredo que esse personagem não é tão mal quanto aparenta ou que ele possui algum segredo.