Poucos dias atrás, meu pai fez 80 anos. Ele tem um nome que foi tirado da Bíblia, ou ao menos foi essa a intenção (o nome dele é Jeosafá, o do livro sagrado é Josafá; acho que na hora o escrivão deu aquela vacilada…). Mas todo mundo o conhece, desde que me entendo por gente, por “seu Josa”.
Meu pai sempre conta a história de que ele era muito, muito pobre. Que passou muita fome na infância, acompanhando seu pai, que era pastor e lavrador. Que a vida sempre foi muito, muito difícil. Só se “aprumou” um pouco depois dos 30 anos, exatamente quando eu nasci.
Ali pelos anos 1970, ele deixou a vida de comerciário e apostou todas as fichas para se tornar comerciante – quitandeiro, como se diz no interior do Maranhão. E foi como quitandeiro, bodegueiro, que ele conseguiu criar os filhos – nós somos quatro: dois menos e duas meninas; eu sou o mais novo – com relativo conforto. Nenhum dos seus filhos soube o que é a fome nem passou necessidade. Tínhamos aquela vida que hoje o IBGE chamaria de “classe média-média”…
Depois que minha mãe morreu, em 2000, papai vendeu tudo o que tinha em Bacabal e se mudou para São Luís. Nessa época, eu já morava em Imperatriz (ele veio para a capital em 2007). A ideia era ficar mais perto dos filhos – porque para mim era mais fácil estar em São Luís do que em Bacabal e minha irmã já morava na ilha. Com ele, veio meu outro irmão e a vida familiar ficou mais integrada.
Na capital, ele viveu então a experiência de entrar na velhice. Fez 60, 70, 80… envelheceu. Fez algumas cirurgias, pôs dois stents no coração, recebeu da vida o “presente” das doenças comuns a esta fase: diabetes, pressão alta, algum tremor. Foi perdendo, com o avanço dos anos, alguma mobilidade. A vida não facilita para ninguém.
Mas ainda é “durão”. Bastante lúcido, tem um pequeno comércio na frente da casa – quitandeiro de verdade nunca se aposenta! – onde vende ali o arroz, o feijão, o crédito de celular, o café, o açúcar, a pipa com linha pra molecada gastar tempo no sol, a caçhaça, a linguiça congelada. Não vende cigarro. Deixou de fumar há um par de anos e diz que tomou “nojo do cigarro”. Faz, isoladamente, sua “campanha antitabagismo”.
Vendeu o carro que tinha há alguns anos porque já estava ficando difícil controlar uma máquina tão grande e com tantos sistemas. E comprou uma moto “cinquentinha”. E é com ela que ele vai à feira, vai fazer pequenas compras pro comércio, vai à farmácia aferir a pressão ou comprar algum remédio da sua longa lista. Nós, filhos e filhas, fazemos uma campanha sistemática contra a moto, que, obviamente, tem efeito zero. Eu mesmo já fiz muita pressão psicológica contra a moto. Mas o argumento dele é imbatível: “Só se morre no dia!”. Então, tá.
Homem de meados do século XX, que viu a chegada no Brasil da televisão, papai se adaptou à internet e às redes sociais. Tem Facebook, tem Instagram, tem Tinder, lê notícias no UOL, vê vídeos do Youtube, faz transações pelo internet bank. Poderia fazer mais, se as doenças não tirassem tanto da sua vontade de aprender. Mas mantém a tradição de passar o dia inteiro com o rádio ligado.
No almoço do domingo (13.03), reunimos a pequena família que temos para cantar os parabéns. Ele, durão, não chorou. Estava impecável, chegou de óculos estilo Rayban, camisa manga longa por fora, bermuda e sapatênis. Depois dos parabéns, agradeceu a presença de todos. Se se emocionou, ficou pra ele. Que ele é do tempo em que “homem não chora”.
Papai sobreviveu à miséria, à fome, às várias quebradeiras do Brasil, ao confisco da poupança, à hiperinflação, à Covid-19 (passou incólume pela pandemia), à solidão de perder tão cedo nossa mãe, às muitas violências que se faz com a pessoa idosa, a toda a maldade do mundo. Segue firme neste plano, escondido daquele anjo lá em cima que olha na lista os nomes das pessoas que já passaram da hora de subir.
Que este anjo esteja com Alzheimer. Ter nosso pai por tanto tempo conosco é um privilégio.