Claro que hoje é dia de celebrar a mulher forte que conquistou o direito ao voto, ao trabalho, à independência financeira e coisa e tal. Mas não sem lembrar que a mulher preta já trabalhava há tempos. Geralmente, de graça, cuidando do filho da mulher branca.
Sabe como é. É que toda mulher é uma mãe em potencial, uma cuidadora. Esse negócio de mulher desejante, com sonhos para além de marido e filhos, é coisa da cabeça do Freud. Então vamos celebrar o amor incondicional, o cuidado com os outros. Viva! Flores para nossas princesas.
Não podemos esquecer o empoderamento feminino propagandeado aos quatro ventos. Maquiagem, looks, estética, filtros. Afinal, a beleza está nos olhos de quem usa aquele sérum básico pra disfarçar os pés de galinha.
A indústria e suas, admito, belas campanhas de marketing, embora restrinja o significado de autocuidado, dá um show no quesito “moça, se cuide, faça uma harmonização facial”. Espero que a escritora negra e lésbica, Audre Lorde, receba os devidos créditos. Em seu livro A burst of light, lançado em 1988, ela falava de autocuidado assim: “Cuidar de mim mesma não é autoindulgência. É autopreservação, um ato de luta política”.
Feitas as devidas homenagens, vamos ao que interessa: em qual lado da pirâmide social está a mulher preta e até quando? Qual a dificuldade em respeitar a vida de uma mulher trans? Por que uma mulher lésbica tem que ser alvo de comentários inúteis? Eu não tenho nada contra as flores, sabe? Tenho até amigas que curtem. Mas hoje, moça, te trago números. Eles não murcham, não morrem e não mentem. Jamais.
Os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019 registraram 66.041 casos de violência sexual. Deste total, 81,8% das vítimas eram do sexo feminino e 53,8% tinham até 13 anos. As mulheres negras foram vítimas de 50,9% dos assédios.
Existe um pensamento historicamente construído de que o corpo de meninas e mulheres pode ser violado, pois é objeto de satisfação para o homem. Em relação à mulher preta, este pensamento originado no período colonial repercute no padrão de violência que elas sofrem até hoje, reforçado principalmente pela intersecção de gênero, raça e classe. Pois, além de serem hiperssexualizadas, as mulheres pretas ganham menos e sofrem mais feminicídio.
Mas, continuemos com eles, os números. Numa de minhas pesquisas googuianas, descobri que lá pelo início do século XIX, a expectativa de vida no Ocidente era de 35 a 40 anos. Não existiam remédios, informações e o avanço da medicina que temos hoje. O que me passou despercebido foi que esta mesma idade, 35 anos, é a média de vida de uma pessoa trans no Brasil em pleno século XXI. Fosse eu uma mulher trans, estaria com os dias contados. E não seria por vírus ou bactérias.
Em 2021, segundo dados de um dossiê elaborado pela ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transsexuais do Brasil), 135 travestis e mulheres transexuais foram assassinadas. A cantora e compositora Linn da Quebrada, em destaque no BBB 22, é uma exceção à regra das mulheres trans no Brasil. A maioria, infelizmente, vive em extrema vulnerabilidade social. De onde vem tanto ódio à mulher trans?
E a mulher lésbica, hein? Essa também sente os efeitos do machismo e do abuso psicológico desde cedo. Muitas vezes, começam na infância, quando a família e as pessoas próximas percebem os primeiros sinais. Se a família for religiosa, usa a Bíblia para justificar seus preconceitos, ignorando completamente que Deus é amor por definição e família é, acima de tudo, acolhimento. Sem falar nos rapazes perguntando, “como ela vai ser feliz sem um homem”? Eu tenho inveja da autoestima dos meninos, assumo. Quando veem o tamanho do estrago psíquico, os familiares costumam dizer: “não, pera. Não é bem assim. Cada um é que sabe de sua vida íntima”. Mas fazer um pix pra pagar a terapia da coitada, aposto que ninguém ia querer, né? Vamos fazer piada, porque mau humor dá rugas e nós mulheres temos que chegar aos 90 com cara de 20, não é mesmo?
Ora, se existe o pensamento de que os corpos de meninas e mulheres são feitos para o homem, a sociedade não compreende quando vê uma mulher feliz com outra mulher. Pois, conforme o pensamento hegemônico, sempre faltará algo. Neste caso, faltaria um homem. Daí surgem perguntas como: quem é o homem da relação? Falando de aparência, tem aquela clássica “você nem parece lésbica, é tão feminina. ”
Uma sociedade disposta a compreender perceberia que identidade de gênero (forma de se colocar no mundo, que inclui, entre outras coisas, o jeito de vestir) e orientação sexual (por quem se sente atração sexual/afetiva/romântica) não são a mesma coisa. Em vez disso, muita gente opta por espalhar sua visão de mundo equivocada e preconceituosa em detrimento da vida e dignidade alheia.
Então eu me questiono: feliz dia da mulher? Depende. O direito de ser, viver e amar está sendo respeitado? Então, sim. É um dia feliz. Caso contrário, é só mais um dia de luta ao qual a mulher preta, a mulher trans e a lésbica já estão acostumadas.