segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

UM CONTO AOS DOMINGOS – #010 – CONTOS DE INFÂNCIA E ADULTEZ (Edmilson Sanches)

Publicado em 8 de dezembro de 2024, às 10:34
Print do Jornal O Progresso.

INFANTICÍDIO

Pensei em bater – toc toc. Toc toc toc. Silêncio. Olhei pela fechadura. Uma enorme angústia entortou-se-me nos peitos. Subiu pra garganta. Virou pomo-de-adão. Fiquei cacundo pra olhar de novo pelo buraco. Aí veio a solidão devagarinho, pelo lado de dentro, e colocou a chave. Tapou minha visão. Mas tardiamente: eu já vira, lá dentro, qualquer coisa estirada, imóvel, sobre o catre.
Fiquei ali. Encostado à porta. Paradão. Bruto bicho estático. Enorme inerme. E a visão: lá dentro um corpo. Morto. E o passado: todinho cachola. Esperando a vez de ser lembrado. E o presente. Apenas um homem de pasta. Numa porta rústica. Buscando a si mesmo, criança. Procurando sua história nas origens. No baixo. Numa casa de favela. Donde fizera projetos para o futuro realidade. Futuro passado. E o barraco de madeira lascada, imutável. Conservado pelos vizinhos amigos. Fechado. Intacto. Mas alguém houvera se descuidado (eu mesmo — concluí depois): lá dentro, sobre a cama tosca, estava meio menino e torto, algo morto. Um corpo. Com ele e ali, também passado. Morto tornado. Agora lembrado. Mas não ressuscitado.
Suor na testa. Tremura nas pernas. Que fazer? Ir-se embora. Se mandar dali. Deixar o tempo para trás. Rolando como bosta n’água. Qualquer tentativa de revivê-lo poderia ser inútil. E, talvez, ainda me levassem preso.
Acusado de ter matado minha própria infância.

ZÉ E MARIA

Zé –– Zé porque todo homem isolado é monossilabicamente Zé –– chegou. Cheio de visões. Entrou. Quis sentar-se, descansar… Não se sentou –– logo, não descansou. Mas até que uma soneca em sua tipufa cairia bem pra ele, ele que tava caindo de sono… Ah desejo doido de se afundar na rede velha e sambada e descansar as imagens!…

                           II 

Maria –– “Maria porque és mulher / e toda mulher Maria é” ––, sua mãe de carne e leite, ali, olhando-o. Desgrota! Lá vem ela de novo, trazendo no rosto pálido e sofrido mais um sermão. Igual aos inúmeros que nas madrugadas afora recitara pra ele: Meu filho, estas não são horas de você chegar, me deixando preocupada; e essa bebedeira toda aí? Vai se banhar pra tirar metade da catinga ou quer comer logo? Olha, deixei aí um pouco de arroz, feijão, quer que esquente o caldo com uns pedaços de galinha? Pára, pára, mamãe! Não quero nada, me deixe em paz, vá dormir, eu me banho, eu não bebo mais, pronto!, eu esquento a comida, eu… E chorava. E ia comer. E via a moela e um coração do frango na marmita (ela sempre deixava aquela moela marrom e um coração minúsculo pra ele). E ele os comia, com raiva. Depois, a alma do galináceo lhe subia ao peito e à boca e ele cantava desbragadamente, anunciando a segunda-feira.

                            III

Lá vem Maria outra vez. Seu filho cantando alto na madrugada anunciava também que ele terminara de comer e ela devia lavar os bregueços: Se eu posso lavar isso hoje, eu não deixo pr’amanhã. Amanhã? Mas já é quase de dia! Então, hoje, quer dizer, ontem, acabou, e hoje não pode… Ah meu Deus, que confusão!, e esse rapaz que não pára com essa cantoria e vai se deitar, deixar eu descansar, aliviar o juízo… Dai-me força, Cristo! Não, mamãe, hoje eu lavo esses troços aí, deixe comigo, hoje é domingo de maio, segundo domingo de maio, seu dia, aliás, foi ontem, já tá amanhecendo mas vale ainda. Deixe que eu lavo, a senhora pode ir dormir, deixe comigo, eu lavo, ajeito tudo aqui…
Não adiantava insistir. E Maria vai. Febre danada de alta: Pra que fui sair e pegar esse bruto vento frio? Vou tomar uns comprimidos pr’aliviar essa dor de cabeça, essa tremura no corpo todo, essa ânsia de morte, não, acho melhor me deitar, talvez passe e eu acorde melhor, com fé em Deus e na Virgem Santa!

                             IV

Na cozinha, mãos ébrias e desacostumadas deixam cair um prato. A mãe dorme tão profundamente… Ele esconderá os cacos, depois explicará a ela, ela não dirá nada –– é tão boazinha a minha mãezinha queridinha. Junta os pedaços de louça. Que sono… Boceja. Leva uma das mãos aos lábios. Mão cheia de cacos que caem ruidosamente. Ela dorme tão profundamente, não escutou o barulho.

                                V

Mas ele ouviu. Se levanta. Percorre o olhar vazio pela casa vazia. Meia-noite. O relógio caro ainda marca domingo, o segundo do quinto mês. Zé não quer continuar a dormir, não tem mais vontade de descansar as imagens, visões de uma juventude de muitas mulheres, bebidas e, oh paradoxo, nenhum dinheiro. Visões, e uma decisão firme e irrevogável quando um caixão barato desce ao fundo turvo da cova. Ah meu Deus, minha mãe!…

No silêncio de uma sala escura, um homem de negócios chora, lembra de Deus, ajoelha… e reza.

Imagem cedida pelo autor.

SOBRE O AUTOR – (*) EDMILSON SANCHES. Jornalista, escritor, administrador, consultor, palestrante. Graduado em Administração Pública e Letras. Pós-graduação em Administração Pública (Brasília), Administração de Empresas (Fortaleza), Comunicação e Desenvolvimento Regional (São Paulo). Doutor Honoris Causa em Administração e Desenvolvimento Humano (Rio de Janeiro).Autor de livros nas áreas de Administração, Biografias, Comunicação, Desenvolvimento, História e Literatura. Do Conselho Regional de Administração e Conselho Regional de Contabilidade. Da Academia Maranhense de Ciências, Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão, Instituto Histórico e Geográfico de Imperatriz (IHGI), Sociedade de Cultura Latina do Brasil (MA), Academia Brasileira Rotária de Letras (MA), Academia Imperatrizense de Letras, Academia Caxiense de Letras, Instituto Histórico e Geográfico de Caxias, Academia Sertaneja de Letras, Educação e Artes do Maranhão, União Brasileira de Escritores (São Paulo), Academia Pan-americana de Letras e Artes (Rio de Janeiro) e Academias e Organizações congêneres do Maranhão, Pará, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo e Estados Unidos.
CURSOS – PALESTRAS – CONSULTORIA: Administração – Comunicação – Desenvolvimento – História – Literatura.
Autor, entre outros, de: “Enciclopédia de Imperatriz” – “Comunicação Interna” (administração) – “Dez Para Você” (motivação) – “Desenvolvimento com Envolvimento” (socioeconomia) – “Redação Empresarial” – “A Canção do Brasil” (crítica literária) – “Falando de Desenvolvimento” (economia) – “Maranhão Não é Mentira” (ensaio) – “Teixeira Mendes — Esse Nome é Uma Bandeira” (biografia) – “Contos Órfãos” – “Crônicas da Esperança Crônica” – “Autopoiésis” (poesia) – “Versus, Contra” (poesia) – “Poemas de Amor e Carne” – “Ribamar Cunha — Trajetória de um Vencedor” (biografia).


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