No ano de 1952, filhos de emigrantes italianos começaram a procurar novas plagas, abandonando a Itália e os pais. Instalaram-se em Ribeirão do Cristo, no sul do Espírito Santo, região fria e extremamente acidentada. Logo adiante, deixaram as regiões frias e montanhosas do Sul e foram para Marilândia, ao Norte, muito mais quente e menos acidentada.
Entre essas famílias estavam a do Agostinho Falqueto (Gustim) e a de Gerônimo Camata (Momi). O primeiro era casado com Amélia, (Mélia); o segundo, com Angelina (Andina). Mélia, Andina, Gustim, Momi… sincopar nomes sempre fora proverbial entre os italianos que para aqui se arriscaram naqueles tempos.
Hoje, a maioria dos descendentes mantêm a tradição da polenta com leite, do vinho de laranja, da moretina, das cantigas folclóricas e da criação de mais um dialeto para a pequena e saudosa Península. Falamos acima dos decibéis permitidos e sendo possível, compramos lembranças atinentes para alertar as visitas: In questa casa siamo tutti nervosi. Nomes verdadeiros desses emigrantes, só em documentos lavrados em cartório. Eis uma pequena passagem:
Entre os dois morros que separavam as famílias do Gustim e do Momi, corria o córrego Liberdade, hoje quase seco por falta das matas ciliares e da utilização de suas águas nas irrigações.
Os filhos e as filhas passavam o dia na lavoura ajudando os pais no amanho da terra, enquanto as esposas cuidavam das crianças de colo, do almoço e de todo serviço dos derredores, inclusive dos porcos, bois, cavalos, galinhas e da limpeza do entorno da casa.
E como no perímetro de três quilômetros só havia aquelas duas casas, todas as vezes que a limpeza do quintal coincidia (e sempre coincidia), as duas comadres trocavam informações. Enxergarem-se não era problema, pois se a Mélia já não era pequena, a Andina, se colocada no Corcovado e abrisse os braços, poucos desconfiariam do plágio. Do sotaque, vocabulário e dialeto empregados, só elas entendiam. Eram neologismos de que hoje me arrependo não os ter catalogado: ficaria célebre ou excomungado.
Escoradas no cabo de seus vassourões de muxinga (uma praga para as pastarias, mas nada melhor para varrer o terreiro), as duas comadres passavam longo tempo brontolando (reclamando, falando de tudo e de todos). Se o tempo estivesse calmo, mesmo com aquela distância de 300 metros, elas conversavam naturalmente.
Nesse dia, porém, o vento sul estava forte, soprando na direção Andina/Mélia. Por isso, a Mélia ouvia perfeitamente, mas a Andina recebia as respostas truncadas: praticamente tinha de adivinhá-las.
E, exatamente nesse dia, Mélia recebera notícias ruins do Sul, avisando que o amigo e patrício “Toni Dalbó” havia falecido. Foi para o terreiro cedo para dar a notícia, mas a Andina só apareceu mesmo no horário costumeiro: nove horas. Mal a ponta do avental apareceu por detrás do esteio da casa, a Mélia gritou:
– Andina, Andina!
O vento dificultava, mas ela percebeu que a comadre a chamava. Parou, escorou-se no cabo de vassoura e afinou os ouvidos. E o diálogo truncado começou:
– Satto, Andina, le mort Toni Dalbó. (Soube, Andina, Toni Dalbó faleceu).
Andina ouvira mais ou menos e como a comadre tivesse um filho chamado Antônio e este possuísse bois de cor avermelhada, procurou situar-se. Mas o vento estava contrário e ela não conseguia ouvir direito, ainda mais naquela mistura infernal de português mal falado com italiano pior ainda. Buscou esclarecimento:
– Quê? Lê mort el bó de Toni? (O quê? Morreu o boi do Antônio?)
A Mélia que a ouvia perfeitamente tentou esclarecer o mal-entendido:
– Não, Andina, lê mort Toni Dalbó! (Não, Andina, morreu o Antônio Dalbó).
Andina pareceu entender. Repetiu para afastar qualquer dúvida:
– A si, lê mort el bó de to fiol Toni! Qual? Quell ros ou quel pi ros? Ah, poareto de Toni, la persa anca su toret! (A sim, morreu o boi do seu filho Antônio. Aquele avermelhado ou aquele bem-vermelho? Ah, coitado do Antônio, perdeu até seu garrote!).
A comadre Amélia, vendo que seria difícil – por causa do vento e da distância – chegarem a um entendimento, abanou o braço e voltou para a cozinha. Dona Angelina continuou varrendo o quintal, muito preocupada com o prejuízo do filho de sua comadre.
É que o começo da vida de todo italiano que veio tentar a sorte no Brasil foi duro e quase desumano. Perder um boi, por exemplo, significava, para eles, uma catástrofe.
À noite, como tudo era motivo para visitas, eis que a família inteira da Andina desceu o morro, atravessou o riacho e subiu à casa da Mélia. Tinha ido até lá prestar solidariedade ao Toni, que perdera o novilho mais vermelho de suas poucas cabeças.
O que seria apenas uma conversa solidária por causa de um boi que morrera acidentalmente, terminou em duas horas de rosário pela alma do amigo Toni Dalbó!
SOBRE O AUTOR – (*) Livaldo Fregona nasceu em 1939, próximo à atual cidade de Marilândia, no Espírito Santo. Completou o curso primário em Marilândia – ES; o Ginasial em Colatina – ES; o Clássico em Vitória – ES; a graduação em Filosofia em Belo-Horizonte – MG; e os cursos de Contabilidade e Laboratório de análises clínicas, em Colatina – ES.
Para se sustentar, trabalhou como protético na Odontótica Capixaba; deu aulas de Português e Biologia nos Colégios Nossa Senhora do Brasil e Estadual Conde de Linhares, ambos de Colatina – ES. Voltando a Marilândia, exerceu diversas profissões: laboratorista (análises clínicas de laboratório); professor de Biologia, Português, Geografia e Religião no Seminário Menor Sagrado Coração de Jesus; guitarrista do conjunto musical “Os Corujas” e contador de diversas firmas de Marilândia e adjacências.Em 1981, mudou-se para Imperatriz, trazendo consigo a maior parte dos familiares. Entre escrever crônicas e contos para “O Progresso” e, esporadicamente, para outros jornais e revistas, lançou seu primeiro livro: CONTOS.
Recebeu, por três vezes, o Prêmio Literário da Academia Imperatrizense de Letras, criado pela Prefeitura Municipal de Imperatriz: em 1997, 2011 e 2018. Recebeu ainda as seguintes distinções: da Revista Brasília, de Brasília – DF, a láurea cultural “Stella Brasiliense”, agora pelo conjunto de suas obras, em 1997; da Academia de Letras e Ciências de São Lourenço, o segundo lugar no concurso “Obras Publicadas em 1997”, por seu livro “Nuvens Passageiras”, em 1997; da Câmara Municipal de Imperatriz, o título de “Cidadão Imperatrizense”, em 1997; da Prefeitura de Imperatriz, a Comenda Frei Manoel Procópio: tida como singular honraria concedida a um cidadão imperatrizense, em 2008.
É Membro Correspondente da Associação dos Escritores do Amazonas; da Academia de Letras e Ciências de São Lourenço; da Academia Itajubense de Letras; da Academia Internacional de Letras; da Academia de Letras da Fronteira Sudoeste do Rio Grande do Sul; da Academia de Letras de Uruguaiana; da Associação Uruguaiense de Escritores e Editores; da Federação das Entidades Culturais Fronteiristas; da Academia Espírito-Santense de Letras e do Clube Internacional da Boa Leitura. É membro fundador da Academia Imperatrizense de Letras, na qual ocupa a cadeira 13, tendo como patrono o escritor carolinense Othon Maranhão.
Uma resposta
Parabéns, Livaldo! Boa narrativa.