quarta-feira, 23 de abril de 2025

A IGNORÂNCIA DE RODRIGO PACHECO

Publicado em 13 de março de 2024, às 7:54
Fonte: Paulo Thiago Fernandes Dias – Advogado. Professor universitário (CEUMA e UEMASUL). Pesquisador-líder do grupo de pesquisa “Instituições do Sistema de Justiça e Dignidade da Pessoa Humana” (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/5436723442142911). Expert na comunidade jurídica “Criminal Player”. Doutor em Direito Público (PPGD/UNISINOS). Mestre em Ciências Criminais (PPGCRIM/PUCRS). Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal (UGF). Bacharel em Direito (ICJ/UFPA). Instagram: @paulothiagof
Imagem: Internet

No início de março de 2024, o presidente do Senado Rodrigo Pacheco, reportou-se ao julgamento do Recurso Extraordinário nº 635659, com repercussão geral (Tema 506), cujo resultado pode culminar na declaração de inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei nº 11343/2006, como caso de invasão de competência do Legislativo pelo Judiciário. Pacheco declarou que somente o Legislativo pode decidir sobre a manutenção ou não da criminalização de uma conduta[i].

Sem delongas, o óbvio deve ser dito: o presidente do Senado e advogado Rodrigo Pacheco precisa retomar os estudos, especialmente por conta do exercício de um dos cargos mais relevantes da República.

Se é certo que somente o Poder Legislativo pode criminalizar condutas no Brasil. Não se pode afirmar a mesma coisa, quando o assunto é a declaração de inconstitucionalidade de um ato normativo (seja ele de natureza penal ou não). É dizer: o controle de constitucionalidade dos atos normativos não é de competência exclusiva do Poder Legislativo.

Mas afinal de contas, o que é esse tal controle de constitucionalidade? Trata-se do poder conferido a determinados órgãos da República para a constatação da compatibilidade dos atos normativos (emendas à Constituição; leis complementares; leis ordinárias; leis delegadas; medidas provisórias; decretos legislativos e resoluções[ii]) com a Constituição.

O controle de constitucionalidade está presente nos países que admitem a supremacia Constituição sobre os demais atos normativos. Isto é, “nos países em que não se adota tal princípio, não se reconhecendo uma hierarquia formal da Constituição sobre as demais leis, não há como fazer o controle de constitucionalidade. Nesses países, em vez da supremacia da constituição, pode vigorar a ‘supremacia do Parlamento’. Historicamente, na Europa, desde o surgimento do Parlamento na Idade Moderna, adotou-se como modelo principal da ‘supremacia do Parlamento’, no qual todos os atos emanados do Parlamento tinham a mesma hierarquia e a última palavra acerca da interpretação das normas era dada pelo próprio parlamento, que poderia revogar atos anteriores. Não obstante, a partir da década de 1950, esse modelo foi substituído na maioria dos países pela ‘supremacia da Constituição’, com a previsão de Tribunais Constitucionais, responsáveis pelo controle de constitucionalidade (exceção feita ao Reino Unido e à Holanda)[iii].

A Constituição da República Federativa do Brasil é classificada como rígida, razão pela qual, o processo de alteração normativa de seu Texto não é semelhante aos dos demais atos normativos, hierarquicamente inferiores a ela em termos normativos. A Constituição da República só admite alteração normativa de seu Texto por intermédio das chamadas emendas constitucionais, que só passam a valer quando a PEC (proposta de emenda à Constituição) for “[…] discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros[iv].

Virgílio Afonso da Silva considera que 06 são os momentos possíveis (e não excludentes entre si) para o exercício do controle de constitucionalidade, os quais variam conforme o agente constitucional competente para o exercício da conferência da validade do ato normativo infraconstitucional com o Texto maior. Didaticamente, o autor aponta que o controle de constitucionalidade pode ser exercido pelo(a): i) Presidente da Câmara dos Deputados, no momento da apresentação do projeto de lei na referida casa legislativa; ii) Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados, após o projeto passar pela apreciação da presidência da casa; iii) Presidente da República, quando sanciona ou veta o projeto de lei; iv) Congresso Nacional, durante a deliberação sobre os vetos, fundamentados em suposta inconstitucionalidade do projeto de lei, do Presidente da República; v) Poder Judiciário, sempre mediante provocação, de forma difusa ou concentrada, abstrata ou concreta; vi) Senado Federal, a quem compete decidir pela suspensão da execução, total ou parcial, de lei declarada inconstitucional por decisão transitada em julgado do Supremo Tribunal Federal[v].   

Em apertada síntese, considerando os limites deste texto, duas espécies de inconstitucionalidade são merecedoras de nota. A inconstitucionalidade material e a formal. Flávio Martins observa que “ao contrário da inconstitucionalidade material, na qual o problema está no conteúdo da norma, na inconstitucionalidade formal, o problema, o vício, está no processo de criação da norma, na sua forma, portanto[vi].

Ilustrando, em 1990, o Congresso Nacional aprovou a problemática lei dos crimes hediondos (Lei nº 8072), cuja redação original determinara que todo condenado por crime hediondo ou equiparado deveria cumprir a pena privativa de liberdade inteira no regime fechado (o mais grave em termos de privação da liberdade). Ocorre que referida previsão legal entrava em rota de colisão com a competência do Poder Judiciário para decidir, diante do caso concreto, com base na individualização da pena, o regime de cumprimento de pena mais adequado para a gravidade efetiva do caso. Dessa maneira, diante da invasão de competência judicial pelo Legislativo, o Supremo Tribunal Federal, em sede de julgamento de Habeas Corpus, decidiu pela inconstitucionalidade do artigo 2º da Lei dos crimes hediondos:

PENA — REGIME DE CUMPRIMENTO — PROGRESSÃO — RAZÃO DE SER. A progressão no regime de cumprimento da pena, nas espécies fechado, semiaberto e aberto, tem como razão maior a ressocialização do preso, que, mais dia ou menos dia, voltará ao convívio social. PENA — CRIMES HEDIONDOS — REGIME DE CUMPRIMENTO — PROGRESSÃO — ÓBICE — ART. 2º, § 1º, DA LEI 8.072/1990 — INCONSTITUCIONALIDADE — EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL. Conflita com a garantia da individualização da pena — art. 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal — a imposição, mediante norma, do cumprimento da pena em regime integralmente fechado. Nova inteligência do princípio da individualização da pena, em evolução jurisprudencial, assentada a inconstitucionalidade do art. 2º, § 1º, da Lei 8.072/1990. [HC 82.959, rel. min. Marco Aurélio, P, j. 23-2-2006, DJ de 1º-9-2006.][vii]  

Em termos práticos, por conta da declaração de inconstitucionalidade do artigo 2º da Lei dos Crimes Hediondos, o Supremo Tribunal Federal não revogou esse dispositivo legal, mas determinou a invalidade constitucional do chamado regime integralmente fechado. Assim, o dispositivo existia no ordenamento jurídico, mas não poderia ser aplicado, em face da sua invalidez.

Logo, admite-se o controle de ato normativo infraconstitucional, seja por conta de seu conteúdo, seja em razão da forma como se deu o seu processo legislativo de criação. Em havendo incompatibilidade com o disposto na Constituição, a inconstitucionalidade deve ser declamada pelo órgão competente.

Sendo o Poder Judiciário o órgão com mais protagonismo no exercício do controle de constitucionalidade, especialmente em função do disposto no artigo 102 da Constituição da República, que confere ao Supremo Tribunal Federal a missão de guardião da Carta Magna, em sendo um crime incompatível com a Constituição, se devidamente provocado, o Judiciário pode reconhecer a inconstitucionalidade desse delito. Novidade zero até aqui[viii].

Voltando ao julgamento do RE 635.659-SP pelo Supremo Tribunal Federal, a verificação da eventual incompatibilidade do artigo 28 da Lei de Drogas com a Constituição é plenamente legítima e devidamente inserida na competência do Judiciário.

O dispositivo legal em questão (“Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”) viola a Constituição da República, exatamente por tratar como crime uma conduta incapaz de ofender bem ou interesse alheio. Explica-se. Quando alguém porta drogas ilícitas para consumo próprio, mesmo que essa droga venha a ser consumida por quem a porta, nenhum interesse alheio é ofendido. Não existe ofensa a terceiros. Em sendo assim, não pode gerar consequências penais e a preservação de sua criminalização é materialmente incompatível com a Constituição. É por esse motivo que também seria inconstitucional uma eventual lei que criminalizasse a tentativa de suicídio, impondo qualquer tipo de sanção penal ao suicida frustrado em seu intuito de autodestruição.

Nesse sentido, no que toca ao controle de constitucionalidade difuso desenvolvido pelo STF no RE 635.659-SP, o que se almeja é o reconhecimento da inconstitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas ataca a Constituição, ante a violação ao disposto no inc. X do art. 5.º da Constituição da República, que consagra o princípio da lesividade penal”[ix]. O objeto jurídico de proteção da referida norma sequer é a saúde do possível usuário da droga ilícita, mas sim a saúde coletiva, cujo titular é a sociedade… Uma aberração em termos de norma penal e que, merecidamente, pode, finalmente, ver sua inconstitucionalidade declarada pelo Poder Judiciário.

“Como defendido anteriormente, a identificação de bens jurídicos sob a chancela do interesse público (v.g. saúde pública) estabelece espécie de (neo)espiritualização do valor ou interesse de tutela. No caso das drogas, sob a justificativa da tutela da saúde pública, inúmeros danos à saúde e à autonomia e à liberdade de pessoas de carne e osso (Ferrajoli) são cometidos. Esquecer o sujeito concreto para criar mecanismos retóricos abstratos de legitimação da punição aos usuários produz significativa violência ao núcleo constitucional que deveria sustentar o direito penal”[x].

Voltando ao RE 635.659-SP, o julgamento foi suspenso após mais um absurdo e injustificável pedido de vista (desta vez pelo Min. Toffoli), dado que o recurso está sendo julgado desde 2015! A garantia da razoável duração do processo mandou um abração para o STF.

Ironias de lado, espera-se que o julgamento seja logo encerrado e que o Supremo Tribunal Federal tenha coragem, apesar da ignorância de Pacheco, do punitivismo vulgar e da pressão exercida pela mídia comercial, para dizer o óbvio: não existe qualquer compatibilidade constitucional capaz de justificar a preservação da criminalização do porte de droga para consumo próprio no Brasil. Se você não desistiu no meio do texto,


[i] Fonte: https://www.poder360.com.br/congresso/descriminalizar-drogas-via-stf-e-invasao-de-competencia-diz-pacheco/

[ii] Artigo 59 da Constituição da República – disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

[iii] ALVES, Flávio Martins. Curso de direito constitucional. – 7. ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2023, p. 222.

[iv] Artigo 60 da Constituição da República – disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

[v] SILVA, Virgílio Afonso da. Direito Constitucional brasileiro. São Paulo: EDUSP, 2021, p. 569-571.

[vi] ALVES, Flávio Martins. Curso de direito constitucional. – 7. ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2023, p. 231.

[vii] Fonte: https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/sumariosumulas.asp?base=26&sumula=1271

[viii] Recentemente, após devidamente provocado, o STF se posicionou pela compatibilidade da criminalização do desacato (art. 331 do Código Penal) com a Constituição da República. Não se tem notícia de qualquer comentário ácido do Parlamentar Rodrigo Pacheco sobre a atuação do STF. Fonte: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=446054&ori=1

[ix] GARCIA, Roberto Soares. A inconstitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas. Boletim do IBCCRIM, ANO 20 – EDIÇÃO ESPECIAL – OUTUBRO/2012. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/bo/boletim-drogas-ibccrim.pdf

[x] CARVALHO, Salo de. A política criminosa de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da lei nº 11.343/2006, 8ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2016. E-book. ISBN 9788502638334. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788502638334/. Acesso em: 13 mar. 2024, p. 340/341.

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