Clarice Lispector é uma escritora festejada, hoje talvez mais que nunca. Biografias, coletâneas, novas edições dos seus muitos textos enchem as livrarias; citações, citações e mais citações de frases suas (ou supostamente suas!) transformadas em aforismos invadem as redes sociais, de todos os tipos, para todas as ocasiões, para todos os males. Clarice é pop. Mas talvez os seus milhões de leitores não saibam que Clarice escrevia para curar-se. Há uma histórica entrevista que ela deu à TV Cultura, em 1977, em que ela diz sobre a sua produção: “eu escrevo quando tenho vontade, não escrevo sempre; há períodos, hiatos, em que eu vegeto ou então, quando estou terminando um texto, para me salvar, me lanço logo numa outra coisa.”
Não é um artifício de retórica essa declaração. Os mais curiosos clariceanos sabem que a autora fazia da literatura a sua tábua de salvação, mesmo. “Escrevo para ficar livre de mim mesma.” Uma ótima síntese do que é a catarse do texto dela.
Talvez por isso, ela tenha, para muitos, um texto tão visceral, tão verdadeiro, tão cheio de confissões que se tornaram verdades (e remédios) universais.
Não falo do escrever um relatório, uma carta comercial, uma dissertação ou uma tese. Falo de desnudar-se na literatura, nos depoimentos que se dispersam aí pelos murais da vida – sejam privados, públicos ou virtuais. Escreve-se muito para falar de si. Escreve-se muito para mostrar-se, ostensiva ou sub-repticiamente. “Escrever é destelhar a casa, sem que os transeuntes percebam”, como dizia Drummond, outro escritor que se mostrava muito, com suas metáforas simples-simples ou com coisas mais diáfanas. “Escrever é transbordar”, traduz o professor e escritor Gabriel Perissé, num texto lindo, cuja leitura recomendo (está pelo Google).
E onde está a cura, afinal, nesse ato de escrever? Está no fato de que quem escreve constrói uma catarse, deixa fluir os seus temores, os seus medos, expurga as suas lembranças, boas ou amargas. É um parto dolorido, cujo rebento vem cheio dos restos de pele do pai ou da mãe. O escritor Cristóvão Tezza explicou, num programa de TV a cabo, que, quando fez o livro “O Filho Eterno”, sofreu para terminá-lo, não tinha nem a intenção de que ele fosse um livro de sucesso. Mas foi. Ganhou, no seu ano de publicação, todos os mais importantes prêmios literários do Brasil. Para quem não sabe, “O Filho Eterno” narra a história de um pai com um filho deficiente – no caso, ele, o autor, e seu próprio filho. Curar-se.
Muitos e muitos outros exemplos estão por aí, no cordão da literatura. Basta lembrar, por exemplo, de “Memórias do Cárcere”, de Graciliano Ramos; ou de toda a obra conturbada de Lima Barreto; ou da trajetória literária de Franz Kafka, com seus escritos esquizofrênicos; ou de toda a poesia dos malditos alternativos dos anos 1960-1970 no Brasil; ou de Mário de Andrade, que se curava no Macunaíma, talvez tudo aquilo que ele quisesse ser. E talvez o exemplo melhor e maior: Machado de Assis, que, dizem, era um recalcado que se transportava para os seus personagens, num processo de projeção de uma identidade desejada, e nunca alcançada na vida vária.
Se você não quiser vasculhar a literatura formal, corra para os blogs, tweeters, para as páginas pessoais dos facebookers. A escritura está lá; redentora. As pessoas a cada dia mais tentando dizer-se para se tornarem melhores do que, efetivamente, são.
A psicanálise efetiva a cura pela fala. Mas a fala também pode estar inscrita – no papel, na tela ou em qualquer outra plataforma.