Há alguns livros que, por vários motivos, gosto de revisitar. Um deles é um volume publicado na querida cidade de Caxias, em 1998, pela Caburé Editora, e que tem como título Itinerário do caos. Na quarta capa do livro, seis intelectuais – Renato Meneses, Nauro Machado, José Chagas, José Maria Nascimento, José Louzeiro e Jorge Bastiani – deixam suas impressões acerca da obra de Morano Portella, poeta nascido no Piauí, mas desde cedo radicado no Maranhão e que havia vencido o Prêmio de Poesia da Secretaria de Cultura do Estado do Maranhão, e publicado, pelo Serviço de Obras Gráfica do Estado (SIOGE), em 1990, seu livro de estreia – Cavalo Marinho.
Foi com base nesse seu livro de estreia que o crítico Assis Brasil, em 1994, chamou a atenção dos leitores – em seu estudo A Poesia Maranhense do Século XX – para a linguagem poética de Morano Portella, que foi considerada pelo mestre piauiense como “objetiva e solta, elegendo temas livres e outras de interesse social”. Realmente, a mescla de lirismo e engajamento social é uma das marcas da obra poética de Morano Portella. Mas além disso, é preciso destacar o cuidado que o poeta tem com a construção de seus textos. Neles, as palavras não são escolhidas de forma aleatória, mas sim estão a serviço de uma ideia central, conforme ocorre no primeiro poema do livro, abaixo reproduzido:
LEITURA
Nenhuma palavra é em vão
e no vão entre elas
janelas
vão abrindo pra dentro. (pág. 17)
Importante notar que o reaproveitamento dos vocábulos, ou parte deles com novas significações desafia o leitor a perceber que nas fretas (ou nos vãos) das palavras escondem-se os variados sentidos da leitura e que essas janelas que se abrem “pra dentro” trazem uma oportunidade de observar com outros olhares aquilo que aparentemente já fazia parte do cotidiano, mas que nem sempre era observado. Essa leitura do mundo, que precede a leitura da palavra, como certa vez escreveu Paulo Freire, pode fazer com que as palavras tenham seus sentidos ressignificados.
Contudo, essa busca de ressignificações não se limita ao uso das palavras dentro do poema. Ela procura também alcançar todos os patamares da sociedade e, em pleno final de século, quando vozes eram silenciadas pelas opiniões midiáticas que tentavam ressoar como verdades absolutas, o poeta aproveitava seus versos para despertar no leitor o senso crítico, demonstrando que os meios de comunicação devem ser utilizados de modo crítico, e não apenas como extensões de nossos sentidos diante de uma sociedade que parece querer viver da espetacularização das ações, como argumenta Guy Debord, e que tem os riscos calculados de acordo com os interesses de quem detém os meios de comunicação, conforme vaticinou o sociólogo Ulrich Beck em seu mais conhecido livro – Sociedade de Risco.
No poema Tempos Modernos III (pág. 30), é possível encontrar uma síntese crítica desse mundo tacocrônico, consumista e pós-moderno, em que o valor pecuniário das coisas acaba retificando a própria existência humana.
Monstro sem cabeça
(muito menos coração)
o polvo engole os povos
e vai defecando cifrões.
Aí, mi Hermano
que só lês o que vês
que só vês o que te dão
rádio, jornal, tv
fazem, sem remorso,
tua bailarina opinião.
As teorias de Frederich Nietzsche, Karl Marx, McLuhan, Derrick de Kerckhove, Gilles Lipovetsky e Jean Baudrillard, entre outros pensadores, desfilam pelo livro, não com finalidade pedagógica, mas sim como grito de alerta ou de alarde. Por diversas vezes também é possível observar o diálogo intertextual de Morano Portella com escritores como Nauro Machado, José Maria Nascimento, Mario Quintana, Baudelaire, Manuel Bandeira e Ferreira Gullar, como no fragmento abaixo, que remete sutilmente ao “Poema brasileiro”, publicado em Dentro da Noite Veloz, livro de Ferreira Gullar:
No Brasil
a cada cinco minutos
morrem de fome dez crianças
todo santo
todo santo
todo santo
dia.
(Pág. 30)
Porém, mesmo trazendo à tona dos poemas os autores que possivelmente serviram de fonte de inspiração para a construção de seus versos, Morano Portella não descuida de uma dicção própria e criativa, que permite, por exemplo, ao leitor desenhar na linha de sua imaginação aquilo que é sugerido pelo poeta em “Visual” (pág. 79):
VISUAL
(ou receita de um poema impressionista)
Acrescente ao verbo pôr
meio sol sobre uma linha horizontal
– o resto
é
saber olhar.
Além de participar de diversas antologias, Morano Portella tem também publicados os livros “Cavalo Marinho” (199) e “Nas asas turvas da vertigem” (2009), além, claro, de “Itinerário do caos” (1998). Podem existir outros livros do autor, mas as estantes particulares nem sempre estão atualizadas. Mas, nestes tempos em que o caos deixa de ser uma possibilidade para se tornar uma certeza, é sempre bom ter diante dos olhos algum tipo de itinerário a seguir, pois “a máquina não pode parar” (pág. 29).
7 respostas
José Nores, excelente texto, deu até vontade de ler a obra, você tem uma visão crítica e sua crítica tem muito bom senso.
Muito interessante. Não conhecia essa obra. Obrigado por me apresentar.
Parabéns Dr. José Neres pela avaliação crítica da obra poética: “Itinerário do Caos” do poeta Morano Portella.
Obrigado, caro Francisco. Sigamos na luta pela Literatura!
Parabéns , prof. José Neres ! bela reflexão. Seus textos me inspiram…
Belíssimo texto! Parabéns!!!
Olhar além do que é visto, é preciso!
Parabéns confrade José Neres, pela criteriosa observação crítica a respeito da obra poética ” Itenerario do Caos ” do poeta Morano Portela.