terça-feira, 10 de dezembro de 2024

CHOQUEI: quando as palavras levam à morte. Induzimento ao suicídio?

Publicado em 3 de janeiro de 2024, às 2:52
Fonte: Paulo Thiago Fernandes Dias – Advogado. Professor universitário (CEUMA e UEMASUL). Pesquisador-líder do grupo de pesquisa “Instituições do Sistema de Justiça e Dignidade da Pessoa Humana” (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/5436723442142911). Expert na comunidade jurídica “Criminal Player”. Doutor em Direito Público (PPGD/UNISINOS). Mestre em Ciências Criminais (PPGCRIM/PUCRS). Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal (UGF). Bacharel em Direito (ICJ/UFPA). Instagram: @paulothiagof
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Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 2630/2020 (registro da Câmara dos Deputados), de iniciativa do Senador Alessandro Vieira (Cidadania/ES), com vistas à criação da Lei brasileira de liberdade, responsabilidade e transparência na internet. Assim, conforme a explicação dada à ementa do PL, este projeto almeja definir “[…] normas relativas à transparência de redes sociais e de serviços de mensagens privadas, sobretudo no tocante à responsabilidade dos provedores pelo combate à desinformação e pelo aumento da transparência na internet, à transparência em relação a conteúdos patrocinados e à atuação do poder público, bem como estabelece sanções para o descumprimento da lei”[i].

Sem entrar no mérito sobre os pontos positivos e/ou negativos do mencionado projeto, dúvidas não tenho sobre a necessidade de uma efetiva regulação das chamadas redes sociais no Brasil[ii]. Como se sabe, referidas plataformas digitais, muitas vezes em caráter de monopólio, servem a grupos de bilionários estrangeiros, cujos propósitos não são, realmente, conhecidos do grande público[iii]. Também é notório que esses grupos possuem um poder impressionante nas mãos, pois o uso das redes sociais, especialmente no Brasil e perante os chamados analfabetos digitais, tem funcionado como principal ferramenta para a buscar por informações.

Patrícia Campos aponta que “pesquisa da consultoria Idea Big Data realizada no Brasil em 2019 mostra que 52% das pessoas confiam em notícias enviadas pela família em mídias sociais, e 43% confiam naquelas mandadas por amigos”[iv]. Esses números mostram como a desinformação circula facilmente por nossos aparelhos celulares. Afinal, quantas pessoas, após receberem mensagens em grupos de amigos e familiares, vão, de fato, checar se tais informações recebidas são verdadeiras? E quando a notícia falsa vem em um site ou perfil de rede social? Você já foi vítima de alguma fake News?[v] E quando uma pessoa elimina a própria vida após ser vítima de uma fake News?  

Em dezembro de 2023, o site de fofocas conhecido como Choquei, com milhões de seguidores em várias redes sociais, divulgou em suas páginas uma conversa amorosa entre Jéssica Vitória Canedo (então com 22 anos) e a celebridade Whindersson Nunes (que tem quase 60 milhões de seguidores em sua conta verificada no instagram[vi]). Rapidamente, esse suposto envolvimento amoroso entre os personagens se tornou viral, alcançando um número absurdo de contas nas redes sociais. Ocorre que referida conversa entre os envolvidos era falsa. Jéssica e Whindersson sequer se conheciam[vii].

Entretanto, parcela considerável dos seguidores da Choquei e da aludida celebridade passou a atacar Jéssica que, lamentavelmente, cometeu suicídio no dia 22/12/2023. Em razão desse terrível episódio, Raphael Souza, responsável pela Choquei, estaria sendo investigado pela suposta prática do crime de induzimento, instigação e auxílio a suicídio, disposto no artigo 122 do Código Penal[viii]. Será que existe algum cabimento nessa imputação?

Novamente, vale observar que os comentários a seguir terão como base as fontes jornalísticas consultadas. Trata-se de uma análise que não levará em conta o teor das fontes de informação eventualmente presentes nos autos da investigação preliminar conduzida pela Polícia.

Previsto no artigo 122 do Código Penal, o crime de induzimento, instigação e auxílio a suicídio integra o rol dos crimes contra a pessoa, especificamente em relação ao bem jurídico vida, sofreu alteração legislativa em 2019, por meio do chamado pacote anticrime[ix]. Com isso, esse dispositivo passou a contemplar 7 parágrafos. Um verdadeiro gasto de recursos públicos com mais uma mudança legislativa inútil[x].

É importante pontuar que o crime do artigo 122 do Código Penal não pune a prática do suicídio, mas sim a conduta de quem induz, instiga ou auxilia alguém a eliminar a própria vida. A pessoa punida por praticar o crime do artigo 122 do Código Penal não realiza o verbo matar. Ela pratica condutas acessórias dolosas que levam alguém a cometer suicídio. Segundo a doutrina tradicional, induzir significa semear na mente de alguém o intuito suicida. Instigar, por sua vez, teria o sentido de reforçar, estimular, uma ideia suicida que a vítima já havia manifestado. Prestar auxílio abrange tanto o fornecimento de meios materiais para que a vítima cometa suicídio (exemplo: uma arma de fogo), como também conselhos, informações e até instruções sobre o método de suicídio (isto é, dizer qual seria a dosagem exata de algum veneno para a vítima ingerir)[xi].

Para que eventual acusação contra Raphael Souza pela prática da forma qualificada do crime do artigo 122 do CP (resultado morte) se justifique, faz-se necessário demonstrar que o responsável pela página Choquei agiu com o conhecimento de que a vítima possuía um histórico de saúde emocional crítico, inclusive com suicídios frustrados[xii], e, justamente por deter referida informação, optou pelo compartilhamento da notícia falsa.

De acordo com a doutrina de Luciano Anderson, vale frisar que “[…] o dolo deve necessariamente ser dirigido à pessoa determinada, ou a pessoas determinadas”[xiii]. Logo, é necessário demostrar que Raphael agiu, deliberadamente, com a intenção de induzir o suicídio de Jéssica, através do compartilhamento da notícia falsa, especialmente, por conhecer do estado de saúde da vítima.

Convenhamos, não parece ser o caso. Afinal, de acordo com o Conselho Federal de Psicologia, fatores variados concorrem para quem alguém se suicide, inclusive questões sociais e culturais, de acordo com esse povo ou aquele país[xiv].

O suicídio configura um ato extremo, complexo e que deve ser tratado com muita responsabilidade e cuidado. Assim, ainda que tenha sido deplorável a conduta de Raphael (Choquei), pelo que se sabe até agora, não se justifica eventual imputação da prática da forma qualificada do crime do artigo 122 do CP. Parece mais viável a imputação referente à prática de crime contra a honra.

Que o Congresso Nacional trate com a seriedade merecida o PL nº 2630/2020. As pessoas (físicas e/ou jurídicas) precisam responder juridicamente pelo uso inadequado, e até criminoso, das redes sociais.

Que a família de Jéssica encontre o necessário conforto para o enfrentamento de momento tão doloroso.

Caso você precise de ajuda, ligue para o Centro de Valorização à vida, discando o número 188 e mantenha sempre um diálogo aberto com seus familiares e amigos. Cuide-se e se importe com quem você ama. 

Até a próxima quarta.


[i] Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141944

[ii] Regulação que já ocorre em muitos países: https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2023/04/25/uniao-europeia-cria-regulacao-rigida-para-redes-sociais-veja-lista-de-empresas-atingidas.ghtml

[iii] Basta conferir como essas redes têm servido para a difusão de ideologias de extrema-direita, com destaque para preceitos nazi-fascistas: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/10/com-taticas-de-disfarce-conteudo-nazista-se-dissemina-pelo-tiktok.shtml

[iv] MELLO, Patrícia Campos. A máquina do ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p. 33.

[v] Confissão: após receber uma mensagem encaminhada por um familiar, caí na famosa fake News relacionada à origem escravocrata da data comercial conhecida como black Friday.

[vi] Fonte: https://www.instagram.com/whinderssonnunes/

[vii] Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2023/12/28/linchamento-virtual-e-fake-news-mortes-de-pc-siqueira-e-jessica-vitoria-reforcam-debate-sobre-responsabilizacao-das-plataformas-digitais

[viii] Fonte: https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2023/12/29/choquei-investigacao-segue-com-suspeita-de-inducao-ao-suicidio-e-quebra-de-sigilo-diz-delegado.ghtml

[ix] A partir dessa alteração legislativa, o crime do artigo 122 do CP também passou a punir o induzimento, a instigação e auxílio à prática de automutilação. Para mais detalhes, conferir: SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Crimes contra a vida. In: REALE JUNIOR, Miguel (Coord.). Código Penal Comentado. São Paulo: Saraivajur, 2023.

[x] Trataremos da vulgarização do Direito Penal em outra oportunidade.

[xi] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro: parte especial. Londrina: Thoth editora, 2023, p. 79-81.

[xii] Fonte: https://www.uol.com.br/splash/noticias/2023/12/29/choquei-inducao-ao-suicidio.htm

[xiii] SOUZA, Luciano Anderson de. Direito Penal. Parte Especial. 2v. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, posição 83.

[xiv] Fonte: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Suicidio-FINAL-revisao61.pdf

Uma resposta

  1. Um excelente convite a uma reflexão profunda, em nível de Congresso Nacional, onde, as leis, de um País, são discutidas e votadas, inda mais, em se tratando de um assunto tão delicado, constituindo-se, num grave problema de saúde pública, na maioria dos países. A Coreia do Sul, por exemplo, vive esse drama de forma assustadora.
    Dr. Paulo Thiago, urge, que haja, em nosso Brasil, fundamentos legais, para coibir determinados tipos de pregação ideológica, filosófica, cultural, em nossas redes sociais. Principalmente, dessa natureza. Não devemos esquecer, jamais, a população de adolescentes e jovens, e, até, crianças, bastante vulneráveis a certas atitudes de extremismos dentro de seus grupos sociais. Gostei muito do oportuno artigo. Bj do pai Itamar Dias Fernandes

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