Tido como um dos livros mais relevantes para uma compreensão introdutória do processo penal, a obra “as misérias do processo penal”, de Francesco Carnelutti, indiscutivelmente, pode ser considerada como atemporal, tamanha a sua capacidade para ilustrar torpezas ainda presentes na atuação do Estado em busca da solução do caso penal.
Em “as misérias do processo penal”, Carnelutti (2002) elabora um diagnóstico histórico, político, jurídico e social sobre o funcionamento do processo penal, tendo como pontos de abordagem o réu, o julgador, o defensor, a imparcialidade judicial, a acusação, a execução penal, o ato decisório e a presunção de inocência.
Sobre a presunção de inocência[i], pode-se afirmar que se trata de princípio estruturante de qualquer processo penal democrático e civilizado. Nos termos da Constituição da República, a culpa de uma pessoa, acusada da prática de crime, só estará devidamente afirmada, quando a decisão condenatória, proferida pelo Poder Judiciário, após o deslinde de um processo penal, tornar-se imutável.
O respeito à presunção de inocência cobra um preço democrático de todas as pessoas e instituições atuantes no processo penal: é mais grave condenar um inocente do que ver impunes os crimes praticados por mais de um acusado. Esta é uma premissa do garantismo (Ferrajoli, 2014), que serve de baliza para que o Estado brasileiro não norteie pelo que existe de mais atrasado e violento em termos de práticas processuais penais.
Três regras fundamentais decorrem do respeito à presunção de inocência. São elas as regras: a) de tratamento; b) probatória e c) de julgamento (Dias, 2022). André Nicollit (2014, p. 152) reconhece ainda uma quarta regra ou dimensão da presunção de inocência, qual seja, a de garantia, pela qual o Estado (investigador, acusador e julgador) deve respeitar a legalidade, rejeitando a admissão de provas obtidas por meios ilícitos no processo penal.
A primeira regra (de tratamento) estabelece que ninguém pode ser tratada como culpada, antes que o trânsito em julgado da condenação seja alcançado. Essa regra, portanto, deve ser respeitada tanto numa perspectiva interna (por todos os agentes envolvidos com a investigação preliminar e com o processo penal), como externa (especialmente, em relação à mídia, a fim de que se evite a chamada espetacularização do caso penal).
“Como regra de tratamento processual, o princípio da presunção de inocência impede que o acusado seja tratado como culpado antes do trânsito em julgado do processo. Isso significa dizer que o acusado não poderá sofrer sanção antes de uma sentença definitiva. Dessa regra decorre, por exemplo, o caráter excepcional das medidas cautelares processuais, especialmente da prisão preventiva, que não poderão ser utilizadas como forma de antecipação da punição, antes do trânsito em julgado da decisão condenatória” (Borges de Sousa Filho, 2022, p. 198).
Mesmo diante de tudo o que já se disse e publicou sobre a presunção de inocência, casos como o da professora de matemática Samara Araújo insistem em acontecer na rotina forense brasileira, sabe-se lá com qual frequência e requinte de crueldade.
Segundo noticiado pela imprensa, Samara ministrava aula na escola de Rio Bonito (Região metropolitana do Rio de Janeiro), quando foi presa preventivamente, por suposto envolvimento em crime de extorsão[ii] praticado no ano de 2010, quando ela só tinha 10 anos de idade. O mandado de prisão preventiva foi expedido pelo Poder Judiciário da Paraíba, atendendo a requerimento do Ministério Público, e cumprido pela Justiça do Estado do Rio de Janeiro[iii].
É basilar que crianças não cometem crimes, mas atos infracionais, razão pela qual não se sujeitam à Justiça comum. Só por isso, a prisão de Samara já um completo absurdo. Entretanto, a precariedade jurídica e a estupidez presentes nessa ordem de prisão vêm ao encontro da crítica publicada neste portal pelos acadêmicos Ricardo de Oliveira Bitar, Juan Tallyson Lima Morais e Airton Melo da Silva:
Além disso, a detenção pré-julgamento também pode levar à criminalização de indivíduos que mais tarde se revelam inocentes. Uma vez detidas, essas pessoas podem enfrentar estigmatização e dificuldades para reintegrar à sociedade, mesmo após serem absolvidas. Dessa forma, só seria legítima a imposição de prisão preventiva, quando o Judiciário, de forma fundamentada, expusesse os motivos que o impedem de aplicar qualquer uma das medidas cautelares diversas da prisão (BITAR; MORAIS; SILVA, 2023, par.5).
Samara ficou 8 dias presa no Instituto Penal Oscar Stevenson do Rio de Janeiro, com mais de 20 pessoas na mesma cela[iv]. Referido tempo de prisão foi suficiente para que Samara perdesse a própria formatura no Curso de Matemática pela Universidade Federal Fluminense[v]. Oito dias foram necessários para que o Sistema Penal da Paraíba percebesse o absurdo óbvio. Oito dias!
A prisão preventiva de Samara foi decretada logo após o recebimento da denúncia, isto é, no início do processo penal. Isso significa que nada se apurou durante a fase de investigação preliminar. Simplesmente, o Sistema Penal paraibano levou 10 anos para descobrir que Samara tinha 10 anos de idade à época em que o crime foi praticado. O Sistema Penal paraibano prendeu primeiro, para apurar depois.
Além disso, qual seria a fundamentação concreta para a decretação da prisão preventiva de Samara? Qual fato processual contemporâneo foi utilizado para justificar o pedido e a decretação da prisão processual de Samara? Segundo o artigo 312, §2º, do Código de Processo Penal, “a decisão que decretar a prisão preventiva deve ser motivada e fundamentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada” (Brasil, 1941).
Voltando a Carnelutti (2002, p. 47), é impossível não concordar com a contemporaneidade de seus escritos sobre as infâmias do processo criminal, especialmente quando diz que “Santo Agostinho escreveu a este propósito uma de suas páginas imortais; a tortura, nas formas mais cruéis, está abolida, ao mesmo sobre o papel; mas o processo por si mesmo é uma tortura”.
Este texto é uma singela homenagem a Samara e às inúmeras pessoas já torturadas pelo autoritário Sistema Penal brasileiro, que insiste no erro de prender antes, para investigar depois.
REFERÊNCIAS
BITAR, Ricardo de Oliveira; MORAIS, Juan Tallyson Lima; SILVA, Airton Melo da. A ineficácia da presunção de inocência frente ao uso indiscriminado de prisões preventivas. Notícias da Região Tocantina, nov. 2023. Disponível em: https://regiaotocantina.com.br/2023/11/20/a-ineficacia-da-presuncao-de-inocencia-frente-ao-uso-indiscriminado-de-prisoes-preventivas/. Acesso 10 dez. 2023.
BORGES DE SOUSA FILHO, Ademar. Presunção de inocência e a doutrina da prova além da dúvida razoável na jurisdição constitucional. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, vol. 8, n. 1, p. 189-234, jan./abr. 2022.
BRASIL, Código de Processo Penal. Decreto-lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del3689.htm. Acesso 11 dez. 2023.
CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Campinas: Bookseller, 2002.
DIAS, Paulo Thiago Fernandes. A (in)constitucionalidade e a (in)convencionalidade da decisão judicial baseada no in dubio pro societate. Ponta Grossa: Aya, 2022.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.
NICOLITT, André Luiz. Manual de Processo Penal. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.
PINTO, Fernanda Miler Lima. Resenha da obra “As Misérias do Processo Penal” de Francesco Carnelutti. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2020. Disponível em: https://investidura.com.br/resenhas/processo-penal-resenhas/resenha-da-obra-qas-miserias-do-processo-penalq-de-francesco-carnelutti/ Acesso em: 11 dez. 2023
[i] O princípio da presunção de inocência, em face da sua relevância política e jurídica, será recorrentemente abordado nesta coluna.
[ii] Segundo reportagem do Fantástico (Rede Globo), o processo foi deflagrado para apurar a prática de estelionato: https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2023/12/03/professora-presa-injustamente-no-rio-foi-solta-depois-do-pai-descobrir-erro-no-processo.ghtml
[iii] Fonte: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/historia-hoje/oito-dias-presa-professora-presa-injustamente-no-rio-e-solta.phtml
[iv] Fonte: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/12/01/mulher-crime-crianca-paraiba-rio.htm
[v] Fonte: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/12/01/mulher-presa-por-engano-perdeu-formatura.htm
Uma resposta
Texto bastante esclarecedor sobre a presunção de inocência. Parabéns!