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“Ó poetas de gabinete,
Que da vida sabeis apenas a lição dos livros,
Vossa poesia é um jogo de palavras.
Vossa poesia é toda feita de habilidades de estilo,
Sem a marca um pouco suja da experiência vivida.
Não sabeis de nenhuma espécie de sofrimento,
De nenhum dos aspectos sedutores do mal,
Não sabeis de nada que está realmente na vida.
[…]”
Não sei que idade tinha o poeta Ribeiro Couto quando escreveu os versos acima. Mas sei que ele contava no máximo 28 anos quando “Discurso Afetuoso” foi publicado como um dos poemas de seu livro de 82 páginas Um Homem na Multidão, de 1926 (Livraria Odeon, Rio de Janeiro).
Tão novo e já dando “receita” de poesia… Talvez isso e outras coisas mais sejam algo próprio da precocidade dos gênios — e Rui Esteves Ribeiro de Almeida Couto (até no nomão um decassílabo, “castigando” nas sinalefas…) foi, na letra da lei, magistrado e diplomata e, na lei das Letras, jornalista, poeta, contista e romancista, também escrevendo e publicando livros em francês (morreu em Paris, em 1963, aos 65 anos).
Certamente o receituário ribeiro-coutiano, pelo menos esse, não ficou para poetas como o autor deste livro, Altair José Damasceno.
Ribeiro Couto e Altair Damasceno não tinham, no tempo, como se conhecer, mas ambos teriam, no sofrimento, com o que se identificar. Por isso, deles não há como se lhes cobrar “experiência vivida” e, nesta, “a marca um pouco suja” — “sujo”, aqui, não o desasseio, a nódoa, a mancha (material ou moral), mas o padecimento, a penúria, as dificuldades, sim, materiais. Ambos os poetas sofreram a perda do pai. Ambos penaram com a escassez em casa e o desdobrar-se materno, para além do amor, no provimento do lar. Ambos zanzaram por Minas e São Paulo…
E seus poemas também contam, ou cantam, essa fase, com o modo que os poetas têm de dizer sua própria vida, em linhas, sublinhas, entrelinhas.
No seu “Soneto da Fiel Infância”, Ribeiro Couto como que arrola, nas duas quadras, as privações havidas e sentidas e como a dor daquele passado nele era mais dor no instante presente:
“Tudo que em mim foi natural — pobreza,
Mágoas de infância só, casa vazia,
Lutos, e pouco pão na pouca mesa —
Dói na saudade mais que então doía.
Da lamparina do meu quarto, acesa
No pequeno oratório noite e dia,
Vinha-me a sensação de uma riqueza
Que no meu sangue de menino ardia.
[…]”.
Em Altair Damasceno, as quadras do soneto “Momentos Passados-presentes” redizem, com a segurança de agora, as lembranças de outrora — inclusive lembranças do que não houve, mas que se deveria ter realizado, e lembranças que, realizadas, não deveriam ser lembradas. O poeta, agente e único senhor de sua história, sabe como dizer isso… poeticamente:
Sou alguém com os pés mais que fincados
Nas brumas do tempo que por mim passou,
Os meus olhos parecem inda voltados
Para as páginas que a vida amassou…
Quisera alguns momentos ter vivido,
Outros vividos tento esquecer,
Por mais que tento não os olvido
E a lembrança só os faz em mim crescer…
[…]”.
A “experiência vivida” de Altair Damasceno vai se enformando em versos, estrofes, poemas. Ela rediz duros momentos de criança e menino, que seguem vívidos no poeta e revividos em sua poesia. Como em “Caminhada”:
“Vou perseguindo
A prometida alegria
Grãos de felicidade
Na infância acenada
Até que à distância
Faço o tudo em nada
[…]
[…] meus raros desejos cumpridos
Sofridamente vividos”
E em “Quotidiano”:
“[…] vou levando as minhas cruzes
Só e sem reclamar das dores que me dão”
Igualmente, as três sextilhas de “Vontade de Ser Criança” recusa “os heróis de hoje”, “onde os sonhos são atacados” e prefere “[…] voltar pra minha infância / Sonhar os sonhos deixados…”.
O pai, Geraldo, e a mãe, Dª Alzemira, deram vida ao filho Altair (e a outros) e o filho, criador (“poeta”, em grego), sempre grávido dos pais, os faz nascerem e renascerem em vários textos deste livro e em todo o texto da vida de seu autor. Em “Saudades de um Pai”, Altair Damasceno não quis contenção e explode os dois quartetos e três quintetos com as saudades — e dores — da perda paterna. Pincem-se estes quatro versos:
“Deixa um buraco profundo
Deixa um silêncio dorido…
Melhor não tivesse ido
[…]
Ou não me tivesse trazido”
Que dor saudosa ou que saudade dolorosa é essa em que, no lembrar a morte do pai, se deseja o não haver nascido? Que dor é essa em que o autor joga — desesperada e inutilmente — com o que não poderia (ou não deveria) controlar: nem a vida para o pai que morreu nem a morte para o filho que nasceu?…
O passado redivivo faz o poeta em “Lágrimas”: “Lágrimas sofridas” / “em mágoas vertidas”. Lágrimas que são “mil pedaços em mim / São gritos de saudades / São soluços de sonhos / Pesadelos medonhos / […]”.
Talvez em “Saudade” o poeta tente apascentar o espírito que, humano, sofre e tenta recolocar os duros dias em seu devido tempo — o passado:
“A saudade escreve
Versos doloridos
Com melodias velhas
Que ferem meus ouvidos
Tempo, tempos idos”.
A partir daí, como em “Partida”:
“Só o tempo, senhor da memória
Quem sabe, um dia, sutilmente,
Arranque, de vez, a triste lembrança
Do que restou de nossa história”.
E Altair Damasceno acena a si mesmo, em seu “Dia a Dia”, soneto praticamente com todos os versos iniciados por verbos no infinitivo, mostrando a imperiosa, mandatória necessidade de agir, fazer coisas (im)positivas — novo caminho, novo amor, regar uma flor… E ali, em meio às catorze linhas, um verso que vale por uma revelação, pois é mister e mistério…:
“Plantar esperanças nas mãos de um menino”.
Mas este livro — “Tempo, Fugidio Tempo” — não é só lágrimas. Não, mesmo. Tem, muito mais, tempos floridos, amores incontidos, declarações derramadas, espiritualidade declarada.
Nos mais de cento e vinte poemas desta obra, o autor sabia muito bem o de que o mundo precisa, maiusculamente — Amor. Um terço (percentualmente diríamos trinta e três por cento) são poemas impregnados desse sentimento de afeição e atração, relação e dedicação, gosto e gozo.
O poeta não se acanha ao falar de amor ao mundo nem de falar ao mundo seu amor — Maria, mulher e mandatária, para quem o Altair-autor dedica o maior poema deste livro (mais de oitenta versos) e para quem o Altair-amor parece ainda enrubescer, especialmente quando dedica, à Senhora de seus sonhos, a realidade de seu amor Éros (o apaixonado…), o amor Storge (o amor familiar, pelos filhos que o casal tem), o amor Philos (de mútuo respeito entre si, como pessoas) e o amor Ágape, incondicional, sacrificial, dirigido à mulher que o homem tem como deusa e, no caso de poeta, também musa. É o próprio Altair que define e revela ou confirma: “Escrever, para mim, é dar vazão aos sentimentos despertados por tudo que me que cerca, de modo especial minha esposa e a natureza”.
Uma parte do total dos poemas, pouco mais de dezessete por cento, é autorreferencial, com as lembranças de aspectos da vida do autor, ele e seus pais, ele e sua mulher e filhos, e também o self, o eu lírico ou eu poético.
A Natureza tem seus dez por cento de cultivo. E em números percentuais que vão do nove a mais ou menos cinco por cento, o autor poematiza sobre pessoas, sobre o próprio fazer poético (metapoesia), sobre Espiritualidade (“A força da poesia inspirada pelos Céus é grande”, já observava Shakespeare), sobre a Humanidade ou humanismo e, é claro, sobre Imperatriz (o rio Tocantins sobressaindo, líquido e às vezes incerto). Altair Damasceno também faz crítica social e política — pois, como lembra Goethe: “Poetas não podem calar-se”.
Portanto, em “Tempo, Fugidio Tempo”, está uma poesia vária, pois vária, múltipla e ao mesmo tempo singularmente única foi/é a vida de seu autor.
O poema “Bem-me-quer?” evoca o provérbio — atribuído ora a Buda, a portugueses e a outros povos e autores — acerca do sândalo, a árvore cheirosa que deixa aroma no machado que a fere fundamente:
“Ainda assim, o singelo odor
Da pétala, já exaurida
Perfuma a mão que a mutila
No jogo do bem-me-quer”.
Jogo mortal esse, para a flor: a pessoa a despetala, e mata, na ilusão de que a última peça floral lhe possa ser positiva… Lendo o poema, não há como eu não me lembrar do “4º Motivo da Rosa”, de Cecília Meireles: “Não te aflijas com a pétala que voa: / também é ser, deixar de ser assim. / […] / “Eu deixo aroma até nos meus espinhos; / ao longe, o vento vai falando de mim.” Ou de uma ode de Pablo Neruda, em que, contrariamente à flor, uma cebola se formou em formosura “pétala a pétala” — só se desfazendo no “fervente da panela”, para alimentar o pobre…
Em “Tempo, Fugidio Tempo” está… o tempo. Mais de quatrocentos termos nocionalmente relacionados a “tempo” foram utilizados em praticamente todos os textos poéticos, os quais, assim, de certo modo, estão como que elados por aquela fieira de palavras, um fio dúctil e atemporal trespassando todo o livro.
Leitor de poetas clássicos desde os tempos de seminário, Altair Damasceno enriquece, com a clássica forma do soneto, a diversidade formal desta sua segunda obra. E entre os mais ou menos trinta sonetos distribuídos neste “Tempo, Fugidio Tempo”, três ou quatro apresentam algumas singularidades formais, como em “Pai Nosso”, “Tributo a Raimundo Trajano” e, creio, em “Para Jacylene e Ricardo”. As singularidades são os sonetos ampliados, ou sonetos de cauda, também chamados sonetos com coda ou sonetos com estrambote. Trata-se do acréscimo de um ou mais versos às clássicas catorze linhas. Desde o século 13, quando o poeta italiano Giacomo de Lentini criou o soneto, que a forma desse poema vem sendo submetida a “subversões”, isto é, alterações — tanto na quantidade dos versos quanto na disposição deles, desfazendo o conhecido grupo de dois quartetos e dois tercetos. O gênio colossal de Stratford-upon-Avon, William Shakespeare, por exemplo, fez sonetos compactos, em um bloco só, sem divisão estrófica, e, por sua vez, o monumental Luís de Camões, que, soldado, entrava em batalhas, e, escritor, apenas as relatava, chegou a acrescentar, ao menos uma vez, mais três versos aos catorze tradicionais do soneto. Camões, soldado, brigava com espada, e, escritor, lutava com palavras…
Já Altair Damasceno, aos catorze versos de “Pai Nosso”, acrescentou ao final um dístico dissilábico (“Pai meu, / Pai nosso…”). Em “Tributo a Raimundo Trajano”, a novidade é a interpolação — por força da formação de acróstico – de um verso entre os dois tercetos. No soneto “Para Jacylene e Ricardo”, a “cauda”, a linha final, é uma expressão interjetiva de felicidade, com onze sílabas poéticas, como nos precedentes dois tercetos hendecassilábicos.
Quase não praticado nos dias atuais, é ao poeta Altair Damasceno que o soneto ampliado fica devendo um pouco de sua sobrevida na Literatura, pelo menos por aqui, nestes rincões pré-amazônicos.
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Há pessoas que, como a Fênix, nascem várias vezes. É o caso de Altair Damasceno: em 1950, em Mantena (MG), nasceu menino amado; nos duros anos de 1964 a 1968, seminarista no Espírito Santo e em São Paulo, nasceu poeta no noviciado; e em 2009, nas páginas da Academia Imperatrizense de Letras no jornal O Progresso, nasceu autor publicado. Um ano depois, em outubro de 2010, sessenta anos de vida, colocou a público parte de sua intimidade: lançou seu primeiro livro, “Versos Íntimos”.
Separados no tempo por 267 anos, os poetas Camões e Castro Alves foram unidos como fonte de inspiração pela mesma pessoa. Altair José Damasceno tem especial devotamento pela obra eterna do bardo lisboeta Luís Vaz de Camões e do vate baiano Antônio Frederico de Castro Alves, dos quais avivam-lhe a atenção os versos chamados “heroicos”, aqueles originalmente feitos para registrar/exaltar proezas humanas em batalhas, guerras, aventuras, e que têm a tônica mais forte nas sílabas poéticas sexta e décima.
Pois foi assim que nasceu o poeta Altair, já se mirando nos maiores…
E por que tanta produção — sabe-se — e tão pouca publicação (em livro)? Um livro a cada dez anos…
Primeiro, que não existe regra, tempo, motivo para se publicarem textos em forma/formato de livro. E se eles existirem — o tempo, o motivo, a regra –, cingem-se tão somente ao livre-arbítrio do escritor. “Fiat voluntas tua”…
Segundo: a essa altura do campeonato, Altair Damasceno, emérito enófilo, sabe muito bem a utilidade de barris para vinhos…
…a necessidade de affinage ou amadurecimento para queijos…
…e a imprescindibilidade das gavetas para textos.
Gavetas são boas para textos como toneis e caves ou adegas são boas para vinhos e armazéns climatizados são recomendáveis para queijos.
Enquanto, no vinho e no queijo, o tempo melhora os produtos, no caso dos textos, o tempo, espera-se, melhora o ser humano… que por sua vez há de ir revendo, relendo, reescrevendo o que lhe foi permitido compor. É o ato de burilar o texto. Lamber a cria. A correção a frio após o calor do ato criador.
Essa pode ser a razão, ou uma delas, de autores guardarem seus escritos e aguardarem a bênção de Cronos.
Nada mais pertinente: Cronos é deus do tempo. Fugidio tempo…
Filho de Urano, o céu, e Gaia, a Terra, Cronos é o tempo no seu modo menos contemporizador e mais destruidor — “O tempo, esse devorador das coisas”, já constatava o poeta romano Ovídio em um dos livros de suas “Metamorfoses”. O tempo não condescendente, o tempo intolerante, inclemente: o tempo que passa, arisco, inconquistável. Inexpugnável. Fugidio.
“Tempo, Fugidio Tempo”, dois mil anos depois, uniu-se ao “fugit irreparabile tempus”, a exortação geórgica do poeta clássico romano Virgílio, um século antes de Cristo. O menino Altair, “compelido — como conta o próprio Autor – a ler os poetas gregos e romanos” guardou nos baús da memória essa referência e tesouro de que o Altair adulto agora se vale, na titulação deste seu novo livro.
Aliás, neste 2020, quando em 15 de outubro o poeta Altair José Damasceno completar 70 anos, valerá a pena brindar igualmente ao poeta Públio Virgílio Maro, que, além de inspirar o Altair, também nasceu em 15 de outubro… do ano 70 a. C. Não são divinas essas coincidências?…
Virgílio é o poeta do “tempo que foge”.
Altair, do “tempo fugidio”.
O que, senão a Poesia, pode de modo belo fazer o tempo passado encontrar-se com o tempo presente?
O passado e o presente de um homem. Ambos estão aqui. Neste livro.
Aproveite. Leia.
Pois o tempo passa.
Esquivo. Arredio.
Tempo fugidio…
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Em tempo: Parabéns, Altair.
EDMILSON SANCHES