Não há dúvida de que Josué Montello é um dos grandes ficcionistas brasileiros do século XX. Sua capacidade criativa encontrou a ressonância perfeita em um estilo elegante e capaz de prender o leitor desde a primeira até a última linha. Algumas de suas obras acabaram ganhando uma legião de leitores, admiradores, estudiosos e até mesmo alguns exegetas. É o caso de Os Tambores de São Luís, Noite sobre Alcântara, Cais da Sagração e alguns outros que fazem parte da chamada Saga Maranhense Montelliana. Porém há também outros romances menos explorados que merecem atenção por parte dos apreciadores da boa literatura. Um deles é Uma Varanda sobre o Silêncio, um livro repleto de temáticas paralelas e que giram em torno de um acontecimento aparentemente fortuito e muito comum em um momento bastante recente da história de nosso país.
Publicado em 1984, quando o Brasil ensaiava sair de um dos momentos mais difíceis de sua história e buscava os caminhos da redemocratização, o romance trabalha a junção entre o esperar e a esperança a partir das cenas iniciais do livro, que parecem, à primeira vista, cotidianas, superficiais e comuns, mas que vão se desdobrando ao longo da narrativa até atingirem um clímax e um desfecho já esperados, mas para os quais as personagens centrais teimas em fechar os olhos.
Ao contrário de outros livros em que Montello capricha no detalhamento dos cenários externos e nas descrições das personagens, em Uma Varanda sobre o Silêncio há certa economia desses recursos estilísticos tão recorrentes na produção ficcional desse escritor. Outro detalhe importante é que nesse romance Montello não ambientou a narrativa em sua terra natal, optando por trazer à tona um Brasil desolado por um regime ditatorial que espalha o terror em forma de censura, torturas e disseminação de boatos que buscavam desestimular quaisquer insinuações de levante popular na busca pela liberdade.
Desde o primeiro parágrafo do texto, quando Luciana – a protagonista do livro – desperta com o ruído do jornal que é colocado por baixo da porta, Montello começa a imprimir no texto um ritmo conscientemente controlado que leva o leitor a sentir a angústia de uma mãe que, instalada em uma cadeira, espera a volta de seu filho, um jovem estudante de engenharia cuja personalidade é meticulosamente deslindada ao logo das quatro partes que formam o romance. Em um regime político em que as pessoas despareciam sem qualquer motivo aparente, cada minuto de atraso do rapaz se torna um drama para sua zelosa mãe.
Ao longo de mais de três centenas de páginas, Josué Montello comprova para o leitor que sabia tecer uma história em que aparentemente nada acontece, além da espera e da ausência de notícias acerca do que poderia ter acontecido com Mário Júlio, o filho único de Luciana e foco de um desaparecimento que dura mais de uma década e meia. Aos poucos, o ritmo da narrativa vai acelerando e a lentidão inicial dos fatos começa a ganhar contornos de um turbilhão que circunda não apenas um drama pessoal, mas também toda uma atmosfera de política nublada por uma aura de silenciamento e de medo compartilhado.
Dado o grande número de personagens, o autor optou por deixar algumas sem muita profundidade, no entanto, além da protagonista, a figura do tio Acrísio ganha relevo ao longo dos capítulos e, mesmo sem contribuir definitivamente para o desfecho da história, serve para mostrar ao leitor como funcionava por dentro as múltiplas engrenagens do poder. É ele o responsável por romper as barreiras que limitavam o campo de visão de Luciana e ao mesmo tempo expor as vísceras de um sistema que não respeitava idade, credo religioso ou posição social, pois o mais importante era manter uma inquestionável ordem, mesmo que para isso corpos e ambientes tivessem que ser violados.
Acrísio entra aos poucos na história e acaba se tornando um suporte para Luciana conseguir suportar os anos e mais anos de ausência de seu filho Mário Júlio. E é exatamente nos momentos em que ele se afasta, geralmente por causa da fragilidade de sua saúde, que Luciana ganha mais independência e deixa de ser apenas uma mãe chorosa para se tornar uma mulher forte e decidida a reencontrar seu filho amado.
Em vários momentos do livro se percebe que Josué Montello não queria apenas narrar uma história, mas sim fazer uma denúncia contra o caos que estava instalado. Possivelmente por isso ele optou por não colocar uma data específica, mas apenas insinuar que tudo estava acontecendo no início dos anos oitenta do século XX. Um dos marcos temporais que ele utiliza para deixar claro o tempo vivido pelas personagens é o atentado sofrido pelo Papa João Paulo II, que ocorreu em maio de 1981.
De modo geral, Uma Varanda sobre o Silêncio pode ser colocado entre as principais obras de Josué Montello. Assim como em De Amor e de Sombra (Isabel Allende), O Dia em que a Poesia Derrotou um Ditador (António Skármeta) e Incidente em Antares (Erico Verissimo), neste romance, o polígrafo maranhense mostra que a literatura pode ir além do lúdico e servir como elemento norteador de reflexão acerca de momentos em que os gritos silenciosos dos oprimidos podem ser ouvidos além do tempo e do espaço.
2 respostas
Perfeita a linearidade da apresentação dessa resenha sobre uma obra de Montello não tão popular quanto as outras, também citadas, a ponto de quase ter o caráter de um romance. Sim, porque, ao final de um parágrafo, queria saber do próximo. E o que vinha ia alinhando a argumentação e tecendo texto e contexto para um desfecho esperado, porém brilhante: gritos silenciosos podem causa barulho em qualquer tempo.
Obrigado, Eloy. Montello tinha muito talento.