“Poesia da Rua da Raposa, onde um menino sonhava o mundo”
Weliton Carvalho enviou-me o livro Ócios do Ofício (2019), em outubro de 2020. Li imediatamente. O projeto gráfico do Instituto Memória Editora & Projetos Culturais de Curitiba destacou setenta e seis poemas que reconstroem uma lírica madura. Um corpus inteiro, num grito longo de leite derramado.
José Neres da Academia Maranhense de Letras afirma na orelha: “a poesia deste talentoso escritor é forte, vibrante, segura e, sem dúvida, pode ser colocada entre as grandes obras das letras brasileiras contemporâneas”. Estou convicto desta qualidade também. Observo o processo de construção da carnadura poética de Weliton Carvalho desde Geometria do Lúdico.
E percebo a necessidade de fuga do formalismo acadêmico, a construção de imagens como cortinas a indicar o rumo. Uma sintaxe própria, vocábulos sinestésicos que vestem o tempo do poeta.
No entanto, meu foco aqui neste texto é Ócios do Ofício. Não tem sessões. É um tiro em câmera lenta, no peito do leitor. Cada metáfora nova arrasta os olhos para o chão do cotidiano. Como Ferreira Gullar explicita: “o homem está na cidade/ como uma coisa está em outra/ e a cidade está no homem/ que está em outra cidade”. Weliton confessa em carta endereçada a mim: “Santa Inês é, para mim, província e universo. Foi aí que eu descobri todas as angústias do existir e todas as razões para sonhar”.
São Luís, Rio de Janeiro, Santiago do Chile são a grama a reinventar os pés do autor de Poema Sujo. Santa Inês é o “cinema novo” a induzir a descoberta do mundo para os olhos de Weliton Carvalho. Na página 62, a cidade é evocada através dos olhos do menino:
PRÉ-HISTÓRIA
No quintal da minha pobre casa na Rua da Raposa,
em Santa Inês do Maranhão, no Vale do Pindaré
eu imaginava uma grande fazenda: uma instância;
tomei um cabo de vassoura e lhe improvisei um cabresto:
tinha nascido um lindo cavalo mais belo que Rocinante,
as ervas daninhas eram o melhor pasto de toda região
e o poço era o açude pelo qual fazendeiros brigavam.
Por certo que o cabo de vassoura não era um cavalo,
as ervas daninhas jamais alimentaram qualquer animal
e tampouco o poço interditado seria um açude viçoso.
Isto já não importava: havia aprendido a sonhar.
A poesia aparece no último verso como uma lição criativa: “Isto já não importava havia aprendido a sonhar”. Neste sentido, Weliton canta desbragadamente a infância, a aldeia. Canta listando as contradições do mundo: “a vassoura não era um cavalo e o poço não seria um açude viçoso”. Não é mesmo. Há, portanto, consciência social na lírica do poeta.
Na página 96, fragmento do poema MAÇÃS, faz o hipônimo de fruta arrastar o tempo para o delírio da imagem. Num lance psicanalítico, de forte anamnese:
Quando meu pai viajava a São Luís
eu o esperava em Santa Inês
com as maçãs prometidas.
[…]
era antes o sonho que ele me dava
na sua carnadura vermelha,
no seu cintilante delírio
de colorir minha vida de menino do interior
que nem conhecia a capital do meu Estado.
O que eu de fato queria da maçã
era a poesia que o mundo me negava.
O poema integra o passado e o futuro da lírica de Weliton Carvalho, num frisson de angústia e prazer, que comove. O acadêmico José Ewerton Neto, na apresentação, constata: “o esforço, o suor e a luta, recursos inerentes à contemplação do ofício, foram diluídos na contemplação. A poesia constrói os passos na Rua da Raposa e ‘se encerra numa cidade inteira’”.
Enamorado pela urbe, por sua gente, suas cores, suas dores, eleva o canto para o mundo. A aldeia está explícita e disfarçada em toda linha discursiva do poeta; na repetência insistente do cotidiano que mistura o provinciano e o universal.
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O projeto “LITERATURA MARANHENSE EM FOCO” é uma iniciativa do Site Região Tocantina, em conjunto com o Jornal O Progresso, coordenado pelo jornalista Marcos Fábio Belo Matos.
Uma resposta
Que texto denso, intenso, poético!
Amei a leitura!
Não há excessos sobre a poética de Weliton Carvalho. Obrigada, aos dois escritores.