sábado, 22 de março de 2025

De contos, causos e oralidades – A tartaruga, o veado e a tal da moral

Publicado em 17 de julho de 2023, às 14:26
Fonte: Helena Frenzel – romanista, letripulista, professora e contadora de causos.
Imagem: Free Pik Premium. Cute turtle cartoon character on white background illustration

Certa vez, em algum confim desse planeta, uma tartaruga e um veado se irmanaram e foram correr mundo. Depois de muitas andanças, toparam com uma princesa medonha que vinha fugida da casa do pai após ter roubado um pouco de seu ouro. Por que ela vinha fugindo, não se sabe, mas algum bom motivo deveria ter. 

Sim, eis que a tartaruga e o veado se juntaram à princesa e formaram um trio. Um belo dia, tendo ela batido as botas em circunstâncias muito estranhas – humm, guardemos este detalhe – os dois passaram a mão no ouro e meteram os pés na estrada. Seguiram viagem e chegaram numa ilha em que havia muito verde e terra para todo mundo que tivesse como comprá-la. Sei que era a Ilha de Cuba, já que este fragmento faz parte de uma coletânea de contos populares da cultura afro-cubana, coletados pela etnógrafa Lydia Cabrera entre 1940 e 1948, mas bem que poderia ter sido a ilha de São Luís, não é mesmo? Por que não? Imaginemos que tenha sido, só de faz-de-conta, pois tanto faz!

Sim, com o ouro da princesa, a tartaruga e o veado compraram um grande pedaço de terra e começaram a trabalhar nela dia e noite, noite e dia, sem dia santo nem feriado. Até então a irmandade entre as duas criaturas funcionava de maravilha, numa harmonia que ninguém nunca havia visto nessa vida. Um dia, porém, o veado ficou doente e a tartaruga se pôs a subir montes procurando umas ervas que poderiam curá-lo. Uma vez no topo de um deles, a bicha abriu os olhos na mesma proporção dos olhos de Lúcifer e, pela primeira vez, com olhos lucifosos, viu tudo o que os dois, juntos, haviam construído e achou que toda aquela riqueza deveria ter um só dono.

Atiçada pela cobiça, a quelônia jogou fora as ervas que havia ido buscar e voltou para casa bem despreocupada. E para estar bem segura de que seu pobre irmão veado não se salvaria daquela enfermidade, a criatura reptílica, que também conhecia de feitiçarias, invocou uns espíritos de porco para ficarem atormentando o doente todas as noites. Os bichos passavam as noites inteiras atentando e voltavam para o quinto dos infernos assim que o sol nascia, porque não suportavam a luz.

Contrariando todas as expectativas, o veado não sucumbiu às febres nem aos feitiços e assim que se viu recuperado, às custas de muita canja de galinha que ele mesmo teve que cozinhar, já que não havia quem dele cuidasse, se pôs a caminho para ir visitar a irmã tartaruga, com quem estava muito preocupado, pois se esta nunca havia voltado com as ervas que o salvariam, só poderia estar doente ou mesmo ter morrido na busca.

Quando o veado chegou na casa da tartaruga e deu bom dia, a bicha véia nem respondeu. O veado, que era um bicho com elevada baixa autoestima, deu bom dia de novo já que não tinham dormido juntos, ao que dessa vez a tartaruga respondeu com uma cusparada de nojo. O veado, coitado, ficou se perguntando que diabo ele havia feito para estar sendo maltratado, ao que a tartaruga lhe respondeu que aquela terra toda era lugar para um dono único, e que tinham de arrumar um jeito de ver quem era o mais forte entre eles dois, já que o mais forte teria a propriedade. Daí que cada um pegou um facão e um pedaço de monte para limpar, e quem limpasse mais seria declarado o mais forte. Por mais que se esforçassem, o resultado era sempre empate, até que a tartaruga pensou numa prova de fogo que só o mais forte poderia vencer.

Propôs que cada um a seu turno escolhesse um campo, entrasse nele, enquanto o outro viesse e ateasse fogo no mato. O que voltasse das chamas, intacto, teria passado na prova e teria a propriedade. O veado, coitado, ingênuo e curto de ideais, achou que a prova estava bem e aceitou. A tartaruga disse que iria primeiro. Escolheu um campo, entrou no mato e gritou de lá que o veado ateasse fogo. O que o veado nem desconfiava era que a tartaruga conhecia o terreno e sabia onde havia um buraco no qual ela poderia entrar, pôr uma pedra na entrada e ficar lá quietinha esperando o fogo queimar.

E assim foi! No final da queimada lá vem a esperta sem sequer um chamuscado. Agora era a vez do veado. O bicho se meteu no campo de boa fé achando que tinha o mesmo valor para vencer a prova. E quando as chamas vieram ele não teve chance, e só sobraram os chifres, que a tartaruga guardou como lembrança do seu pobre irmão veado, que como ele nunca existiu outro no mundo, e deles fez um instrumento musical que rendeu muitas outras histórias.

Mas estas ficam para a próxima. Quanto à famigerada moral, tanto o veado quanto a princesa talvez ainda estivessem vivos se não tivessem tido baixa autoestima e tivessem praticado o velho ditado que diz: “Sou de cera, só quero quem me queira e só confio em quem não me sacaneia”. Mas se esse é mesmo o caso, jamais saberemos. O fato é que, na maioria das vezes, os maus prosperam e os bons se lascam, e no final das contas a culpa é sempre da cobiça, essa bicha véia má! Deixo a vocês, de bom grado, a tarefa de especular sobre a moral do caso. Lembrando que a gente, de fato, nunca sabe – antes do fato – quem é bom ou mau de verdade.

Para a querida tia Helena (in memoriam), que encantou minha infância com contos assim.

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