terça-feira, 15 de outubro de 2024

DOIS LIVROS EM MINHA MESA

Publicado em 21 de maio de 2023, às 8:03
Imagem cedida pelo autor.

Por: José Neres – Professor. Membro da AML, ALL, APB e Sobrames-MA

Possivelmente, os bens mais preciosos que recebemos da literatura são os amigos de papel que se solidificaram em carne, ossos e palavras.

De repente, aquela pessoa aparentemente distante e inalcançável se materializa em nossa frente e troca uma ou duas dúzias de palavras que valem por um século de experiência. A literatura e os estudos podem levar um dia aquele filho de um pescador com uma professora leiga a dialogar com algumas das mais significativas autoridades em seu campo de pesquisa. De repente, o rapaz tímido que se sentava na terceira fileira de uma sala de aula e que raramente falava pode aparecer ministrando uma palestra sobre um assunto qualquer para uma plateia cheia de pessoas que antes ele só via nas páginas de jornais ou na tela de uma TV…

Não é apenas no campo da ficção que fatos assim podem acontecer… A história está repleta de exemplos que parece que foram extraídos das páginas de um livro ou de um roteiro de uma mirabolante série. De repente, não mais que de repente, uma obra de arte pode saltar de um envelope e encantar olhos e ouvidos cansados das lides com a realidade descrita nos noticiários. De repente, não mais que de repente, um abraço amigo e um aperto de mão podem selar uma parceria que dará muitos frutos.

Não temos a menor ideia do que nos espera nas próximas curvas. Não sabemos nem mesmo se haverá uma próxima curva. Mas torcemos para que existam muitas curvas em nossos horizontes. Torcemos para que haja uma plantação de horizontes em nossa vida e que nossos caminhos sejam iluminados pela claridade da gente.

O alento para uma semana inteira de trabalho e reunião pode vir nas páginas de um livro ou de dois. Disso não podemos querer escapar. É dessas amizades que não podemos nos desfazer.

Recebo duas obras de arte em forma de livro. De um lado está o novo livro de Luiza Cantanhêde – Plantação de Horizontes (Penalux, 2023, 96 páginas) – um livro para ser lido com calma e paciência, para que não nos percamos nas muitas imagens poéticas que já fazem parte do estro da autora, mas que parece que vem se renovando livro após livro. Luiza Cantanhêde é o tipo de escritora capaz de colher poesia com o olhar e de transformar cenas aparentemente cotidianas em versos aparentemente simples, mas que escondem em si uma complexidade própria de quem busca nas próprias vivências a matéria prima para a construção de seus textos.

Mas ela não entrega ao leitor as experiências em forma bruta. Ela trabalha cada poema até que ali reste apenas o que é essencial. Até que cada palavra faça sentido dentro da confluência de sentimentos que se mesclam e que se engastam formando um todo que se divide e se multiplica em um caleidoscópio de infinitas imagens. Essa experiente escritora consegue garimpar cenas de suas recordações e transformá-las em poemas eivados de beleza, de simplicidade e de verdades que dificilmente seriam ditas de outro modo com a mesma intensidade, conforme é possível ver no poema abaixo intitulado “Romaria”:

Meu avô Romão

Tinha a seca nos olhos

O cofo na cintura

O facão nas mãos

(a lâmina rústica da terra)

Meu avô Romão

Nego fulo

As coivaras no peito

Acostumou-se ao sertão

Do seu coração (pág. 36)

A mesma lâmina que acompanha a escritora em outros poemas de outros livros agora serve também para separar as duas partes do poema e ao mesmo tempo para unir a rusticidade de uma vida à poesia que emana da beleza de encontrar um locus amoenus dentro das asperezas de tantas vidas que talvez nunca compreendam à poeticidade que as envolve sem acalentá-las.

Fome, miséria, injustiças sociais e telurismo são sementes que geminam nos livros de Luiza Cantanhêde e que fazem brotar reflexões até mesmo nos olhos de quem já se sente anestesiado com as agruras da vida moderna e que sabem que nem sempre os dias serão melhores, mesmo que os direitos de cada um de nós estejam estampados nas páginas de nossa “Constituição”. Então ela diz:

Tenho o direito

De esperar o pão

Com a fome nas mãos (pág. 80)

Esse novo trabalho de Palafitas remete à constante necessidade de ressignificar o que já foi tantas vezes dito, mas que ainda precisa se repetido milhões de vezes até que o sentido das coisas talvez nem mesmo façam sentido.

Mas chega às minhas mãos também A Claridade da Gente (Penalux, 2023, 106 páginas), o novo livro do já consagrado poeta Paulo Rodrigues, um dos bons nomes de nossas letras contemporâneas.

Paulo Rodrigues é dono de uma dicção poética que não consegue se calar diante das injustiças sociais quer tentam apagar o brilho e a alegria de um novo nascer de sol. Ele sabe que a palavra é uma poderosa arma de combate, mas que essa arma não pode ser utilizada sem os devidos cuidados. Então com o mesmo esmero com quem Luiza Cantanhêde burila os versos a fim de suavizar as imagens e destacar a beleza por trás das dores e dos sofrimentos, o autor de Escombros de Ninguém tenta potencializar em cada verso a força viva de uma dor que não busca lenimento. Parece que o poeta defende a tese de que amenizar as fraturas sociais não as tornam mais palatáveis e aceitáveis. Ele prefere tocar nos pontos nevrálgicos do ser humano para que cada leitor do susto e da angústia que serviram como gênese para os poemas. Isso é bastante perceptível em poemas como “Gilza dos Santos”, um contundente depoimento que pode servir de esboço biográfico para inúmeras pessoas que tiveram a infância decepada pelas frias mãos de uma sociedade insana que tanto valoriza os bens materiais.

não tive infância

o patrão cortou

o pescoço da boneca

junto com o cacho de arroz.

não tive infância.

não sei brincar;

(costurar roupinhas).

não sei brincar;

não tive infância.

enruguei antes

do amanhecer do dia.

não tive infância:

minha boneca morreu criança. (pág. 37)

Atento ao que acontece no mundo e sem esconder seu olhar ideológico ligado ao marxismo, Paulo Rodrigues sabe que a inspiração poética pode vir das mais diversas fontes, desde a leitura de um livro de Zygmunt Bauman até uma notinha veiculada na internet. Mas tais informações não serão úteis se servirem apenas para enfeitar um verso. É preciso ir além das aparências e mostrar que a poesia é algo vivo e pulsante, como ocorre em “Para as paredes”:

li em um blog

que os entregadores

vão fazer greve,

consciência de classe!

é disso que estou

falando,

entendeu? (pág. 75)

Luiza Cantanhêde e Paulo Rodrigues são duas dessas vozes das quais não podemos nos afastar. Cada um, a seu estilo, tem produzido obras de grande qualidade e sabem que, nas lides com a poesia, a palavra sempre deve ir além dos grafemas e podem servir para abrir olhos e para despertar não apenas o senso estético, mas também a sensação de esperança dias melhores. A literatura pode providenciar milagres!

3 respostas

  1. Um texto que nos faz refletir a potencialidade dessas duas personalidades contemporâneas de nossa literatura. Há um tempo observo Luiza e Paulo. Dois nomes, dois amigos que apesar de próximos, fazem suas próprias linguagens. Neres, por ser um leitor perspicaz, sempre está vendo os bons autores e escrevendo textos muito pontuais sobre os escritores maranhenses.

  2. Nos sentimos lisonjeados(as) pelo olhar pontual do Mestre José Neres!Agradecemos pela excelente análise, estendo meu agradecimento ao site Região Tocantina pelo acolhimento!

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