Pensar sobre resiliência é pensar que nós, seres humanos, temos, muitas vezes, a incrível capacidade de poder mudar histórias. Me vi pensando sobre isso dia desses, ao encontrar pela rede uma nova versão da fábula da mocinha do leite. Conheces? Pois vou te contar. Eis que em algum lugar do passado, bem lá no passado mesmo, uma jovem camponesa começa a sonhar em ter o seu próprio negócio – ou a se tornar empreendedora, como hoje se ouve dizer por aí.
Pois a jovem acordou um dia e se pôs a fazer planos, que eram mais ou menos assim: “Ô que a vaquinha malhada começou a dar leite hoje! Esse primeiro leite eu tiro, vou para o mercado, vendo e compro três pintos. Com esses três pintos, quando estiverem crescidos, eu vendo os ovos e compro mais três pintos”, e por aí foi sonhando. Quando ela terminou de ordenhar a vaquinha, e ia contente e saltitante pelo caminho, não viu uma pedra, tropeçou e, desolada, ficou vendo seus sonhos sumirem em forma de líquido branco que a terra tragava.
Na fábula original, a que eu li quando criança, a moça fica lá chorando enquanto a voz narradora aparece com a moral: “Não se deve contar com o ovo no fiofó da galinha!“, ou coisa do tipo, sempre uma moral que quer jogar para baixo, apontar o dedo, dizer bem claro: “Eu te disse, eu não te disse? Não adianta se rebelar…“, e coisas assim.
Porém um ser humano qualquer, alguém que eu nem sei quem é, em sua resiliência e criatividade, achou por bem dizer que “Mas que nada, que essa história não poderia acabar assim com essa menina chorando, que a vida não é desse jeito que funciona, não senhor!“. E fez a menina levantar, pegar o balde, voltar para casa e fazer tudo de novo. Em algumas outras versões alguém passa nela um Merthiolate, que é para ela saber o quanto dói separar o corpo da alma, mas depois de enxugar as lágrimas ela se levanta, ergue a cabeça e vai.
E esse final é bem mais lógico porque, afinal, a vaca tinha ficado em casa e voltaria a dar leite no dia seguinte, e a moça só teria que ter mais cuidado dali em diante para não mais tropeçar em seus sonhos e vê-los sumir outra vez, embebidos pela terra.
E houve gente que foi mais adiante ainda e já viu a moça no futuro, dona de fazenda, cheia de porcos, galinhas e vaquinhas, toda feliz.
Tem gente que conseguiu enxergar para além do romantismo e previu essa criatura pobre, que agora rica, transformada em capitalista filho de rato que não tem pena de explorar seus empregados, só pensa na grana, que não está nem aí para sustentabilidade e meio-ambiente, uma criatura bandidona que contrata pistoleiros e manda expulsar as pessoas de suas terras – para tomar posse delas, um ser inescrupuloso que agora é do agro negócio e tem muita grana para manter suas bancadas nos Congressos da vida, para que ninguém mais que tenha nascido pobre possa sequer sonhar em vir a ter um pedaço de terra, por conta da tal reforma agrária. A pobre criatura do leite transformada em monstro sem coração que destrói florestas para fazer pastos, manda matar ativistas e usa agrotóxico pra produzir cada vez mais e barato, que manda e desmanda e por aí anda.
“E a resiliência, dona?“, tu me perguntas. E eu te digo: Povo, resiliência é a dos pobres, dos oprimidos e das famílias daqueles que perderam a vida lutando pela vida de todos, nossas e das florestas!
E como acaba essa história? Não acaba, povo, segue adiante. Porque enquanto houver resiliência – e muita luta – a gente segue inventando “finais” melhores e mais justos, ainda que sejam escritos com tinta vermelha, de muito sangue.