Na teoria política e na vida prática tornou-se clichê dizer que a representatividade (ou o sistema representativo) está em crise. Diz-se sistema representativo o método de governo que se dá pela escolha de representantes que são autorizados por meio do voto (ou outro meio) a agir em nome do povo, ou ao menos, em nome de seus eleitores. Esse método de governar é historicamente moderno – pós-século XVIII – e sofreu diversas modificações ao longo do tempo até ganhar as feições mais ou menos uniformes no ocidente. Desejo neste ensaio, tratar de três questões sobre a representatividade: as nuances históricas, a relação com a democracia e a sua suposta crise.
Inicialmente, pelo aspecto histórico, a ideia de governar por meio de representantes ou delegados é moderna. Existe um pressuposto lógico-político para representação que é a tese de que nós podemos – e devemos – governar. Em maior ou menor grau, o representante sempre é um substituto, aquele que está presente em nossa ausência. Assim, uma vez que admitimos como sociedade que nós – o povo – é que tomamos as rédeas do nosso destino social (economia, estado, valores etc), rejeitamos as experiências de governos absolutistas ou teocráticos, em que as decisões são tomadas por terceiros, sem nenhuma possibilidade de intervenção popular. Podemos decidir de modo direto ou por via de representação, instituindo os representantes (via indireta). De qualquer modo, mesmo na representatividade, existe o pressuposto básico da auto governança, que caso fosse deixada de lado, esvaziaria o próprio sentido de representação.
Surge então a pergunta: por que escolhemos a via representativa e não a via direta? Os estudiosos mais pragmáticos irão apontar para as condições concretas do desenvolvimento social: aumento da população, surgimento de grandes centros urbanos, expansão do direito ao voto (negros, pobres e mulheres) e extensões territoriais de difícil gestão. Em termos práticos, a representação foi uma estratégia imposta pelas circunstâncias sociais e estruturais da modernidade. É pensando nessas circunstâncias, que os insatisfeitos com a maneira que a representatividade vem sendo exercida, criaram estratégias de viabilizar uma governança direta, por meio de plebiscitos, referendos e associações políticas. São formas de “retornar” a uma experiência de governo popular direto.
Existe uma relação entre democracia e representação, porém, essa relação não é tão evidente, pelo contrário, os democratas foram (são) grandes acusadores do sistema representativo. Ainda que a representação partilhe do pressuposto da auto governança, a ideia de representação é oposta – pelo menos em um primeiro olhar – à noção de democracia.
A democracia foi pensada pelos gregos como “governo de todos”, visto que a homogeneidade do conceito de povo só lhe foi atribuída séculos depois. Ainda que de maneira falseada[1], a noção de democracia teve como pilar a igualdade dos cidadãos no exercício do governo. A representação é diametralmente oposta, ele funciona por meio da diferenciação entre aqueles que governam e os que são governados, isto é, ela baseia-se na hierarquização política dos cidadãos.
Autores como Charles Wright Mills (O Poder da Elite) e Ellen Wood (Democracia contra capitalismo) acusam o sistema representativo de criar elites políticas, econômicas e sociais para afastar “o povo” das decisões estatais, concentrando o poder nas mãos de representantes que se apresentam como distintos, superiores e até predestinados. De fato, olhando pela experiência inglesa – representatividade parlamentar – o modelo representativo foi criado com o objetivo de minorar a participação popular no governo, uma estratégia baseada na concepção de representantes meritórios, que uma vez autorizados pela eleição, poderiam agir totalmente independente dos interesses de seus eleitores.
Deve-se ressaltar que o mecanismo das eleições para escolha dos representantes também não é uma obviedade. Na Grécia e outros locais que exerciam a democracia, a escolha dos governantes dava-se por sorteio, contudo, grupos sociais abastados temiam esse tipo de governança, seja por ser imprevisível, seja pela constante ameaça de contrariedade de seus interesses. Por este motivo, Mills e Wood reforçam que a diferenciação no sistema representativo se consolidou como mecanismo de elitização por meio das eleições.
Fica então a pergunta: a partir de que momento o modelo representativo eleitoral tornou-se atraente à democracia? A reposta quase sempre aponta para o surgimento dos partidos políticos no século XVIII. O parlamentarismo apresentava rachaduras e os trabalhadores fabris começaram a acusar os parlamentares de defenderem apenas os interesses dos patrões. Nesse contexto, os trabalhadores viram no modelo representativo uma oportunidade de fazer com que seus interesses e desejos fossem ouvidos. Ainda que não tivessem renda, habilidades sociais ou prestígio, os trabalhadores tinham a seu dispor o voto e a organização coletiva. Em outras palavras: os partidos políticos europeus viram o potencial democrático que subjaz no modelo representativo eleitoral e o exploraram a seu favor.
Pois bem, o que hoje se chama “crise da representatividade” acompanha também a “crise dos partidos políticos” – ainda que sejam, como visto, coisas totalmente distintas. As pessoas acreditam que não existe um elo entre elas e as instituições políticas (parlamentares, governantes e partidos). A eleição tornou-se um ato protocolar, formal e mais obrigatório do que cívico. Algo similar a levantar a tampa do vaso sanitário antes de usá-lo.
Se me permitem o uso de alegorias, acredito que a representatividade também é um sentimento e acreditamos que ele está se esvaindo. A democracia, que é o casamento do poder popular com o político, entra em crise e atualmente estamos no ponto de discutir a relação. Se a democracia é o matrimônio entre o povo e seus governantes, creio que a conversa seria mais ou menos assim:
– Povo: […] afinal, qual nosso problema? Porque não conversamos mais? Somos dois estranhos em uma mesma casa.
– Representantes: estou fazendo o melhor por ti, não veres? Tu és ingrato.
– Povo: mas só fazes tua vontade, não me escutas. Faz o que queres. Se opino, reclamas, me chamas de burro. Se te peço algo, não fazes ou faz de mal gosto.
– Representantes: O que queres de mim? [Os representantes dão de ombros e viram as costas].
O matrimônio democrático é uma troca de direitos e deveres de ambos os lados. O que chamamos de crise da representatividade na maioria das vezes é uma percepção da abusividade dos governantes com nosso “voto” de confiança. O adultério contumaz dos governantes com o poder econômico e social e a nossa passividade diante do desprezo dos representantes levam a um sentimento de melancolia, uma imersão no fatalismo e desesperança, um desânimo cívico. Não há dúvidas, o quadro clínico brasileiro é a depressão política. Precisamos de uma terapia urgente!
Talvez o primeiro caminho para o processo de cura política seja questionar se existe de fato uma crise da representatividade. A representação também é um espelho, às vezes, existe feiura no povo também, como a violência, intolerância e autoritarismo. Dizemos que os governantes não nos representam, mas nessa época eleitoral, muitos cidadãos dançam e festejam o nome e número de seus candidatos como uma grande festa de casamento.
O que me parece é que a bradada crise da representatividade é uma crise de idealismo e autoengano. São reclames de evitação que teimam em dizer que os governantes não nos representam, quando devemos admitir que na verdade eles representam o pior de nós. Aquilo que não queremos levar a público, toda neurose acumulada pelas nossas experiências de opressão, ressentimento e violência. Os governantes saem do meio de nós (povo), eles não vêm dos céus e nem do inferno, mas de nossas entranhas.
Culpar as regras da representação democrática como problema da relação política é o mesmo que culpar o código civil pelo fracasso de um casamento e esquecer que são os cônjuges que direcionam o êxito e fracasso da relação, em nossa metáfora, o povo e seus governantes.
Dia 30 de outubro de 2022 selaremos um novo matrimônio e precisamos escolher que direção queremos tomar, mas antes de tudo, precisamos (re)conhecer nossas qualidades, fraquezas e monstruosidades. Desenganar-se significa compreender que não somos santos, que temos máscaras que escondem defeitos, mas também, que podemos, uma vez caída as ilusões das falsas qualidades, melhorar como cidadãos e zelar por uma democracia feliz.
[1] Cabe sempre lembrar que os cidadãos gregos eram um grupo restrito, não equivalendo-se a literalidade do conceito de todos.
Uma resposta
Atualmente seus textos tem demonstrado uma impressionante habilidade de me deixar deprimida. Mas está tudo bem, a tristeza é apenas uma emoção e faz parte dos movimentos de mudança. Amei a analogia. Estou trabalhando a mente para aceitar o sim que vai vir na cerimonia do dia 30. E acredito que tem uma boa parte da população que nunca se sentiu tão representada.