Sabe aquele tipo de livro que a pessoa começa a ler sem esperar muita coisa e que, a cada nova página, vai notando que o texto se torna cada vez mais interessante, até chegar a um ponto em que a criatura é capaz de passar a noite em claro, lendo, só porque não consegue deixar o livro antes de chegar ao final?
Pois isso aconteceu comigo com a leitura do romance “Pão de Limão com Sementes de Amapola”, de Cristina Campos. O romance conta a história de duas irmãs maiorquinas, isto é, que nasceram na ilha espanhola de Maiorca, no Mar Mediterrâneo, e que foram separadas na adolescência. Enquanto uma das irmãs ficou na ilha, se casou, montou família e tratou de viver uma vida burguesa típica representante da alta sociedade local, a outra foi viver e estudar nos Estados Unidos, se formou em medicina e passou anos trabalhando para a ONG Médicos Sem Fronteiras, pulando de um país a outro, de uma catástrofe a outra, sempre levando a medicina e a cura a quem não tem o privilégio de ter acesso a elas. Um dia, do nada, as duas irmãs recebem como herança, de uma desconhecida, um moinho e uma padaria em Valdemossa, um povoado de Maiorca, e a médica tem que voltar à sua ilha natal para resolver os mistérios e os trâmites da herança e, – por que não? – aceitar a oportunidade que lhe foi dada pelo universo de reaproximar-se da irmã. É um romance que trata do poder da amizade entre mulheres, e também do poder que têm as mulheres quando estas decidem, de verdade, tomar as rédeas de suas vidas.
Mais ou menos no estilo de “Como agua para chocolate”, da mexicana Laura Esquivel, e também do belo filme “A Festa de Babete”, nos quais a comida tem o poder de influenciar, de maneira mágica, o comportamento das pessoas, cada capítulo começa com uma receita que, de um modo ou de outro, tem a ver com o tema de cada capítulo e com os sentimentos e conflitos das personagens do romance.
Entendo bem a inquietação da personagem que volta às suas origens. Depois de muitos anos vivendo fora voltar para casa não é fácil, por vezes é bem doloroso e não tem nada de alívio! Eu, que levo muitos anos vivendo longe da minha terra natal, sei muito bem o que isso significa, o quão difícil é voltar ao passado e recordar ou revivê-lo, mesmo que as recordações e a experiência tenham sido boas pois, como dizia Rubem Alves, escritor, teólogo e psicanalista brasileiro, quando a gente deixa a nossa terra e, a distância, sente saudade dela, a gente sente saudade de algo que aos poucos vai deixando de existir na realidade, já que as coisas se modificam ao longo do tempo. O que a gente sente de verdade é saudade de um tempo ou de um lugar que só existe na nossa cabeça, ou seja, quase como se fosse uma fotografia.
Sinto falta de um Maranhão que há muito tempo não existe mais, ou que pode mesmo nunca ter existido fora da minha percepção. O que tenho claramente em minha cabeça reflete como eu via e percebia os lugares, o que é algo muito diferente de como esses lugares de fato eram na época em que neles vivi.
Quando me lembro de São Luís penso no sítio onde cresci, das árvores, do gosto doce, mas não exagerado, da manga “cocota”, que era assim chamada porque tinha uma protuberância – que não deixa de ser uma “saliência” – que lembrava uma vulva – por incrível que pareça tem gente que não sabe que a parte externa do órgão genital feminino se chama “vulva”, e não os trocentos apelidos que utilizam por aí para fugir do termo preciso.
Sim, lembro-me do gosto doce da manga cocota, do ácido das pitangas, do sabor único da seriguela e do gosto rosa do guaraná Jesus, das goiabas, dos coqueiros e de seus frutos, das amêndoas secas que eu costumava sentar no chão e quebrar o caroço com uma pedra para tirar de dentro as preciosas nozes, lembro do tabuleiro furado e preto de fuligem que utilizávamos para assar castanha de caju, e do sabor único da castanha quebrada, assada, ainda quente. De São Luís eu me lembro do Centro Histórico, das ruas estreitas, da Rua do Sol, da Rua Grande, das pontes sobre o Rio Anil, das casas à beira da maré, dos rios da Maioba, das trilhas que fazíamos de bicicleta e que nos levavam da estrada da Maioba à Praia do Araçagi. Lembro das vezes em que me reunia com os amigos num bar na praia e alguém tocava um violão e das músicas que cantávamos, da voz macia de Carlinhos Veloz declarando o seu amor pelo Imperador da Imperatriz, o Tocantins, da gente acolhedora da cidade de Carolina, do aeroporto de Imperatriz, das estradas, da Chapada das Mesas, das cachoeiras, dos Lençóis, tanto das dunas quanto dos lençóis brancos que se punha para quarar ou secar ao sol e ao vento, imagem que inspirou Garcia Márquez a arrebatar uma de suas personagens no famoso “Cem Anos de Solidão”, enfim, lembro de coisas boas, lembro de pessoas inesquecíveis, muitas das quais não se encontram mais neste plano…
E é isso o que a literatura faz com a gente, ela nos leva para um passeio fantástico que vai muito além das páginas que estamos lendo, ou que foram lidas alguma vez por nós no passado. Ela interliga tudo: ficção, memória e realidade.
Enfim, o Maranhão é a minha terra natal, e é um lugar muito bonito. Há recantos e sabores que eu não tive o prazer de descobrir. Aproveitem, pois, a chance e descubram esse lugar por mim, a cada dia. Só tenho a agradecer-lhes e ficar aqui “morrendo de saudade”, lendo romances e alimentando memórias que não sei se de fato vivi ou não. Aproveitem e valorizem, o Maranhão é lindo! E claro, nas pausas, pegue um bom livro e dê “de comer” à sua imaginação.