segunda-feira, 14 de outubro de 2024

DIA 02 DE AGOSTO, INTERIOR DO MARANHÃO: “ESTOU MORRENDO DE UMA DOENÇA CONTAGIOSA. PEÇO-LHE PARA NÃO INVESTIGAR AS CONDIÇÕES DE MINHA MORTE. VOU COMETER SUICÍDIO”

Publicado em 2 de agosto de 2022, às 15:40
Fonte: Edmilson Sanches – Administração – Comunicação – Desenvolvimento – História – Literatura – Palestrante – Ministrante de Cursos – Consultor.
Livros de Buell Quain. Imagem cedida pelo colunista.

Você é jovem. Tem 27 anos e já é um cientista, com doutorado e tudo, com estudos e trabalhos feitos em diversas partes do mundo e é considerado um dos mais promissores talentos em sua área. Tem uma irmã. É bem nascido: o pai é médico, pioneiro no uso da novocaína em anestesia e fundador do maior hospital da região; a mãe também é médica, dedica-se a crianças e é ativista na luta contra a tuberculose.

Então, em fluente inglês escreve uma carta, onde, de início e diretamente, expõe o próprio drama e anuncia a tragédia particular: “I am dying of a contagious disease. I request you to not investigate the conditions of my death. I am going to commit suicide.” (“ESTOU MORRENDO DE UMA DOENÇA CONTAGIOSA. PEÇO-LHE PARA NÃO INVESTIGAR AS CONDIÇÕES DE MINHA MORTE. VOU COMETER SUICÍDIO”).

E o ato final: as mãos empunham uma faca e, incompreensão das incompreensões, desespero dos desesperos, pesadelo dos pesadelos, horror dos horrores, em diversos e sucessivos golpes a lâmina metálica fria agride, desfere e fere, lacera e dilacera, talha e retalha, parte e reparte partes do próprio corpo.

Mas o fim próximo, se estava anunciado, não estava completo: aos golpes de faca afiada sucedem o martírio derradeiro, a sevícia última, a violência autoinfligida fatal: o corpo esfaqueado, esburacado, sangrento e sangrando, encaminha-se rumo… à forca.

Na presença de duas testemunhas pasmas e impotentes, em um cenário de matas e morros, pendurado a um nó de corda, um homem se mata e morre.

Foi há 83 anos, em Carolina, Maranhão, no dia 02 de agosto de 1939. Com apenas 27 anos o antropólogo e Ph. D. norte-americano Buell Halvor Quain, nascido em Bismarck, cidade de 150 anos, 91 quilômetros quadrados, 73 mil habitantes e capital do estado de Dakota do Norte, Estados Unidos, comete suicídio. Deixou sete cartas para amigos brasileiros e para familiares e colegas nos Estados Unidos. Lúcido, pode-se dizer, isentou as duas testemunhas — dois índios — de qualquer responsabilidade em relação à sua morte.

Embora tenha merecido registros e elogios de antropólogos e etnólogos como o francês Claude Lévi-Strauss — considerado uma das grandes inteligências do século 20, falecido em 2009, um mês antes de completar 101 anos –, Buell Quain e seus quatro livros (três deles “post-mortem”) parecem ter ficado esquecidos. Sua vida e sua morte, ou melhor, o mistério que as circunda e envolve, foi objeto do livro “Nove Noites” (2002), do escritor brasileiro Bernardo Carvalho. A obra é assumidamente parte ficção e parte não ficção, nessa criativo “fiat” frankensteiniano que escritores estão divinamente autorizados a pronunciar, cometer, realizar.

Em um “site” norte-americano sobre doenças ou distúrbios psíquicos (www.bipolaraid.org) há um espaço intitulado “Famous People with Mood Disorders” [Pessoas Famosas com Distúrbios Emocionais, em tradução livre]. Nele listam-se, em ordem alfabética, pessoas do presente e do passado, mortas e vivas, que são/seriam portadoras desses distúrbios da complicada alma humana. Do “A” ao “Z”, a lista “pega” um mundo de gente. Quem sabia que o ultrainteligente teólogo e escritor espanhol São Tomás de Aquino sofria de depressão?

E o poeta mexicano Manoel Acuna, também depressivo, que se matou tomando cianeto de potássio, um dos mais violentos venenos que a Química já elaborou?

E Pushkin, notável escritor russo? Era bipolar.

E Antero de Quental, notável filósofo e escritor português? Também bipolar. Matou-se a bala.

E Boris Yeltsin, o primeiro presidente da democracia russa? Tinha depressão, mas não cometeu suicídio: morreu do coração em 2007 e era uma “figura”, com seu estilo e suas gafes movidas a “nonsense” e vodka — muuuuuuuuuita vodka… Foi a preocupação de diplomatas do seu e de outros países e, também, fez as delícias (e malícias…) de jornalistas e cronistas do mundo político.

E, encerrando a lista, na última letra está a competente e, com a licença de Michael Douglas, bela cantora e atriz britânica Catherine Zeta-Jones, provavelmente o mais perfeito dos espécimens bipolares vivos…

Não esqueçamos do Stefan Zweig, o jornalista e escritor austríaco que veio viver e morrer em terras tropicais e aqui escreveu seu famoso livro conhecido mais como frase do que como título: “Brasil, País do Futuro”. Em 1942, em Petrópolis (RJ), após uma tocante e superbem escrita carta de agradecimento, desilusão e adeus, o depressivo Stefan e a esposa, Lotte, tomaram ácido (barbitúrico, em dose mortal). No escrever do escritor, “em boa hora e conduta ereta” ele achou melhor “concluir uma vida na qual o labor intelectual foi a mais pura alegria e a liberdade pessoal o mais precioso bem sobre a Terra”. No encerramento da breve carta, Stefan saudou todos os seus amigos, desejando-lhes “que lhes seja dado ver a aurora desta longa noite”. Como ponto final, anunciou: “Eu, demasiadamente impaciente, vou-me antes.”

Sem trocadilho, a lista de antropônimos de portadores de distúrbios psíquicos vai de um polo ao outro e nela está o (quase) esquecido Buell Quain, após cujo nome registra-se: “depression, American ethnologist, suicide” (portador de depressão, etnólogo americano, suicida).

A misteriosa, controvertida, complexa e triste morte de Buell Quain talvez não devesse terminar em um dia 02 de agosto, no interior do Maranhão, nem, muito menos, em uma relação não tão famosa de “famosos” psiquicamente perturbados.

Além dos estudos linguísticos, antropológicos, sobre nossos irmãos índios (os trumais, no Mato Grosso; os craôs/krahôs, no Maranhão/Tocantins), o Brasil, os Estados Unidos e a Ciência estão devendo um esforço que não apenas esclareça e reconte os mistérios da morte mas, sobretudo, resgate e enalteça o talento, os trabalhos e — ele os devia ter — os sonhos de vida de Buell Quain, jovem, 27 anos, doutor, agente e destinatário da própria e trágica morte — morte testemunhada por dois pares de olhos e ouvidos índios e pelo silêncio ancestral de árvores e bichos habitantes de um pedaço de floresta no município maranhense de Carolina, há exatamente 83 anos, 02 de agosto de 1939.

* * *

Talvez caibam ao viver e desviver de Buell Quain os versos de Antonio Domenico Bonaventura Trapassi, também chamado Pietro Metastasio, respeitado e influente escritor romano do século 18:

“Não é verdade que seja a morte

O pior de todos os males;

É um alívio dos mortais

Que estão cansados de sofrer.”

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