(Cristiane de Magalhães – poeta, professora de Língua Portuguesa).
A mãe não contou aquilo como se narrasse uma epopeia, mas como se escrevesse um bilhete, para esconder a dor da perda. Disse que os anjinhos, se estivessem vivos, hoje seriam homens. Como assim? Informação grande não se dá em uma linha. A menina não teria um irmão, teria dois.
Vez ou outra, a menina ouvia uma voz dentro de casa se lamentando por ter uma família pequena. Ao saber dos anjinhos, entendeu o porquê da lamúria. Até então, uma família de três pessoas parecia suficiente. Tirando os anos de introspecção e desencaixe, a pequena fez amigos na vizinhança, escola e igreja. Não faltava nada.
Provável que eles tivessem nome de santo também. Com certeza seria Antônio Francisco e José Pedro. As mães da família de Lara sempre diziam que ter um filho homem era uma benção. Imagina a felicidade de pronunciar quatro santos nomes masculinos? Antônio Francisco, vem aqui. Você viu o José Pedro? E impostaria a voz para as mulheres da vizinhança ouvirem que naquela casa tinha homens. Lara não entendia aquela devoção a figuras masculinas.
O nome de santo que a menina recebeu caiu bem e amenizou a fraquejada, digo, maldição, digo, não sei. Qual o antônimo de benção? Antônia Lara. A menina preferia o segundo, mas para a promessa funcionar, alguém teria que chamá-la pelos dois. Assim explicou sua madrinha, quando falou da promessa para Lara nascer com saúde.
Na hora da chamada na escola, a sala inteira debochava de Lara. Em 1993 não tinha esse negócio de bullying. Lara não via graça, mas para seus amiguinhos, agora meros colegas, era tudo brincadeira. Quando a professora começava a chamada, ela respirava fundo com fogo nos olhos e, antes de responder “presente”, esperava a algazarra terminar: Toinha, Toinha, Toinha.
Desde cedo, aprendeu a ser meiga, não falar palavrão e a rezar cinco pais-nossos para espantar pensamentos agressivos. Afinal, meninas são princesas e devem ser gentis e, de preferência coitadinhas. Um dia, a menina criou coragem e pediu gentilmente: professora, Antônia não, por favor.
A senhora Odete respondeu que sim com um aceno de cabeça e dali em diante passou a chamá-la de Lara. A professora admirava aquela habilidade de usar o por favor, com licença e obrigada. “Tão bem-comportada. Quase uma mocinha.” De frente para a professora, a menina mostrava os dentes e arregalava os olhos. De costas, bufava e contraía o maxilar. Aos nove, já estava exausta de interpretar tantos papéis.
Ao chegar em casa, ela perguntou para a mãe se morreria, caso descumprisse a promessa, pois queria ser chamada apenas de Lara. Dona Lourdes disse que era melhor não arriscar.
Lara traçou um plano. Seria temporário. Conversou com a professora e, dali em diante, na hora da chamada, a senhora Odete cumpriu o combinado. E assim ela fez durante várias semanas. Toinha. Presente, professora.
Vendo que Lara não se incomodava, os colegas desistiram do bullying e a professora voltou a chamá-la pelos dois nomes. Assim, a pequena parou de desagradar aos santos, continuou sendo uma boa menina e adiou o encontro com seus irmãos no além.
Lara sobreviveu no parto, continua sobrevivendo e fingindo não se importar. Apesar dos arranhões, a promessa funcionou, pois, desde que nasceu, nunca mais morreu.