(José Neres – Professor, escritor, membro da AML, ALL e Sobrames)
Sem cumprimentar os colegas e sem responder aos inúmeros bons dias que lhe foram dados tanto pessoalmente quanto pelas mensagens de aplicativo, a garota entrou na sala de aula, conectou seu fone de ouvido ao celular, escolheu uma música que lhe pareceu mais adequada para o momento e mergulhou em seu universo particular.
O professor entrou na sala, deu um bom dia que recebeu poucas respostas, pediu silêncio inúmeras vezes. Diante da indiferença da turma, reconheceu-se derrotado e passou para a chamada em um tom monótono e automático. Ana Carolina. Augusto. Beatriz. Carla. Carlos Eduardo. Ewellynn etc. etc. etc. Alguns responderam aos gritos, outros apenas levantaram o braço.
Chegou a vez dela: Priscilla. Como estava na segunda fileira, mesmo com o barulho dos colegas e o som da música, conseguiu ouvir seu nome. Uma eternidade.
Diante do quadro, munido de um pincel, o professor se esforçava para ministrar o conteúdo do dia. Escreveu em letras bem grandes: Era Vargas. De novo!!!
Era a terceira ou quarta vez que estudava aquele assunto. já sabia de cor as palavras que seriam ditas. Populismo. Crise. Estado Novo. Plano Cohen… Nada daquilo lhe interessava. Na verdade, o mundo não lhe interessava, nem mesmo seu mundo particular parecia lhe interessar. Até a metade do ensino fundamental era tida como boa aluna. Colecionava prêmios, medalhas e troféus de segunda, terceira ou melhor aluna do ano. No ensino médio, porém, era um fracasso total. Estava ali somente para cumprir os dias letivos obrigatórios, para responder às chamadas, tirar o mínimo para ser aprovada e seguir a vida.
Aquela música da playlist era muito romântica. Precisava de algo mais agitado. A voz fanha do professor teimava em ultrapassar as barreiras do fone de ouvido. Eram dois horários… Olhou para o celular, seu eterno e inseparável companheiro de todas as horas… O tempo não passava! Ainda faltava muito para acabar aquela tortura e começar outra. Qual seria o próximo horário? Sei lá! Qual era mesmo o nome daquela professora de voz horrível? Esforçou-se em vão para lembrar-se. Não interessa mesmo. Deve vir escrito na folha de prova na semana que vem…
O jeito era apoiar a cabeça nas mãos e fingir que estava assistindo à aula e entendendo. Quando o professor olhasse em sua direção, bastaria acenar com a cabeça e demonstrar interesse. Os longos cabelos pretos encobriam o fone sem fio. Ah, o horário seguinte era de Física. Mais cinquenta minutos perdidos!!! Ainda bem que depois havia o intervalo… Mas até o intervalo era chato. Aquele povo sem noção querendo puxar conversa… O celular era seu refúgio sagrado…
O tempo parou por alguns segundos (ou seriam minutos?). Despertou com a mão do professor tocando seu ombro: Está se sentindo bem? Você está pálida. Se quiser pode sair um pouco para se recuperar. Só então percebeu que o caderno, que mal foi aberto, mas até aquele momento não havia sido tocado, estava molhado com suas lágrimas. Quando havia começado a chorar? Será que os outros haviam percebido? Tentava controlar as lágrimas, mas não conseguia. Duas mãos invisíveis pareciam apertar seu pescoço. Ar… Ar… Precisava de ar.
Calma. Não precisa gritar! Tudo vai dar certo. Respire fundo. Bem fundo… Onde estava? Não era mais a sala de aula. Mas era o professor de História que estava ao seu lado. Você entrou em crise. Jogou o celular no chão, pisou nele com força até quebrá-lo todo. Chorou, disse que me odiava, xingou-me muito e depois pediu minha ajuda. Trouxemos você para esta sala longe dos olhos dos demais. Você acordou gritando e dizendo que queria se matar, que não suportava mais a família, os colegas, os professores, o mundo… Quando você quiser, Priscilla, estamos aqui para ouvir você e ajudar.
Os soluços iniciaram uma forte competição com as lágrimas. Nem ela sabia quais eram seus problemas, mas agora tinha certeza de que eles fizeram dela sua morada. Era preciso expulsar esses incômodos inquilinos. Mas sem ajuda, isso seria impossível. E ela que, sem perceber, já estava perdendo terreno para aqueles seres que silenciosamente se instalaram dentro dela. Era preciso reagir…
Estou ao seu lado. Pode contar comigo!
Tomou o copo d’água que lhe era oferecido. Respirou fundo… Mas qual era mesmo o problema? Era jovem, rica, bonita, conhecia boa parte do mundo, tinha um namorado lindo e despertava inveja de todos os seus seguidores nas redes sociais. Não tinha o que dizer. Mas aquela voz fanha tinha sido a melhor coisa que ouvira nos últimos anos.
No chão, o celular parecia não ter mais conserto. Mas sua vida, com um pouco de ajuda, poderia ser bem melhor.
7 respostas
Bela sintetização da realidade de muitos jovens e até de crianças que através da fixação pelo celular, penetra nos misteriosos caminhos cerebrais e vêem-se perdidos no no seu próprio microcosmo que não lhe facilita o retorno ao seu mundo real.
Bela sintetização da realidade de muitos jovens e até de crianças que através da fixação pelo celular, penetra nos misteriosos caminhos cerebrais e vêem-se perdidos no no seu próprio microcosmo que não lhe facilita o retorno ao seu mundo real.
Parabéns.
Muito interessante este conto. Como Priscila mudou !!! Fruto da evolução tecnológica, mas foi o Professor a tábua de Salvação. Parabéns confrade Neres
Obrigado pelo comentário, caro Hilmar Hirtega.l
Parabéns, professor Neres. Sempre sensato e criativo.
Muito bom esse texto. Parabéns para o autor. Muito atual, a problemática enfrentada hoje por uma sociedade esfacelada, cheia de tudo e sem paz.
Texto sensacional, caro irmão Neres.
Com objetividade, mostra o atual cenário da maioria dos nossos jovens após o advento das novas tecnologias, principalmente com o uso exacerbado dos celulares.
Parabéns!