domingo, 1 de dezembro de 2024

Pautas identitárias e a nova razão do mundo

Publicado em 30 de janeiro de 2022, às 9:49
Imagem: Freepik

Uma das temáticas mais centrais da contemporaneidade é sobre as chamadas “pautas identitárias”. Essa terminologia é muitas vezes usada para caracterizar pejorativamente os grupos minoritários que ocupam aos poucos espaços de fala pública, como negros, feministas, LGBTQI+, indígenas, pessoas com deficiência, entre outros. De certa maneira, a caracterização negativa – e jocosa – imputada aos movimentos identitários decorre de uma ação reacionária de cunho político e intelectual às mudanças que tais coletivos têm gerado na forma de interpretar e agir no mundo. Nas redes sociais, cujos componentes principais são a animosidade, o anonimato e o reducionismo conceitual, a discussão acerca das pautas identitárias tem sido pobre e falaciosa.  Contudo, o debate público sobre o identitarismo tem longa data nos meios acadêmicos, desde a década de 50 na Europa e Estados Unidos, e no Brasil essas pautas surgiram em decorrência do pluralismo do movimento de redemocratização de 1985 e incorporados, em grande parte, no ecletismo da Constituição de 1988. Quero, então, suscitar a seguinte reflexão: qual o papel das pautas identitárias na atualidade?

Em primeiro lugar, considero o identitarismo como o reconhecimento de um grupo como portador de uma identidade, isto é, uma condição específica de existência. É um conceito relacional, de modo que seu surgimento decorre da condição histórica da opressão de uma identidade por outras. Trata-se do contexto de ameaça. A identidade é sobressaltada quando ameaçada por outrem, portanto, ela é reativa. Engana-se quem pensa que existem apenas movimentos identitários de esquerda. A história nos dá vários exemplos de identitarismos de direita, como são os casos do conservadorismo (religioso ou não) e nacionalismo. Todos são movimentos que buscam destacar a identidade perante um contexto de diferenças. Nesse sentido, a identidade é o conjunto de atributos que um determinado sujeito usa para se reconhecer no mundo e também para ser reconhecido. São exemplos da identidade a nacionalidade, a cor, o gênero, a condição física, a língua, a religião etc. Assim, a identidade não é algo puramente individual, ela é social e política também. Muitos atributos de nossa identidade no mundo não escolhemos, nascemos com eles e em decorrência deles somos alocados e avaliados pela sociedade.

Como se deve imaginar, os atributos de identidade citados (nacionalidade, gênero, cor, etnia, entre outros) sempre existiram e foram importantes demarcadores sociais. Então, por que o debate tornou-se tão emergente na atualidade? A resposta está na palavra reconhecimento, que representa um processo social relativamente recente na história da humanidade. Defendo que a luta por reconhecimento, como aduz o alemão Axel Honneth, é um conceito que demarca uma transição entre a modernidade e a pós-modernidade. Modernidade não é um termo cronológico, mas um tempo social e ideológico. Pode-se chamar de Modernidade o período da humanidade em que prevalecem determinados valores, comportamentos e crenças, cito algumas características: na política, a queda das monarquias absolutistas; no conhecimento, o protagonismo da ciência e o declínio das explicações metafísicas do mundo; na cultura, a prevalência da tradição europeia de culto à razão, à ordem e à autoridade; e na economia, o fortalecimento do sistema capitalista de produção. Em síntese, a modernidade é marcada por um “pensamento sólido”, pela busca de princípios universais e por diretrizes que levassem “toda” a humanidade ao progresso, especialmente por meio da ciência. Com isso, a modernidade produziu o sujeito moderno, que também pode ser chamado de sujeito universal, em termos Kantianos, é o sujeito movido pela razão, abstrato, sem interferências de traços externos ou contingenciais.

Entretanto, a modernidade não conseguiu cumprir suas promessas de progresso científico e iluminismo racional. As experiências das grandes guerras mundiais, a exploração do capitalismo fomentando desigualdades abissais e a prevalência de regimes de neocolonialismo geraram ceticismo sobre as utopias modernas. Nesse mesmo segmento, o sujeito moderno não se mostrou tão universal, neutro e imparcial como se cogitava. Pelo contrário, ele tinha cor, nacionalidade e sexo: homem, branco, europeu e burguês. Outros segmentos sociais, como mulheres e negros, começaram a se perguntar por que deveriam seguir regras, princípios e valores de terceiros, que não os consultaram (ou ouviram suas impressões sobre o mundo) e ainda mais que os oprimem em todas as esferas da vida? Qual a legitimidade das normas sociais fundamentadas em um sujeito hipotético? Nesse momento, o sujeito universal cai e o sujeito pós-moderno se ergue. O processo de reconhecimento se manifesta então como reivindicação de participação na deliberação e decisão sobre questões que afetam a vida das pessoas, que antes se encontravam à margem da construção da realidade política, social e cultural. O Direito destaca-se como um dos mecanismos sociais mais eficazes na promoção das modificações sociais postuladas pelos novos movimentos identitários, seja por meio de alterações de Constituições, seja por meio de Tratados Internacionais de Direitos Humanos ou ainda por meio do desenvolvimento de interpretações judiciais criativas e intervencionistas.

Hoje, sem dúvida, estamos vivenciando a pós-modernidade e os movimentos de reconhecimento ganham destaque em todas as esferas públicas e populares. No entanto, em que pese o diagnóstico transformador, os movimentos identitários sofrem críticas de vários eixos. Destacarei dois: as críticas dos conservadores e as críticas dos progressistas. Os conservadores acusam os movimentos identitários de promoverem um separatismo entre os sujeitos, causando uma desintegração social e um relativismo moral que estimula o surgimento de “guetos ideológicos”. Já os progressistas acusam os identitários de abandonarem as lutas emancipatórias por justiça social pelo exclusivismo das lutas por reconhecimento. Em outras palavras, acusam os identitários de desistirem da política e da crítica das condições estruturais da desigualdade para reduzir o sofrimento humano a uma questão de identidade.

Não posso desconsiderar que são críticas pertinentes. Mas aproveito o momento para fazer uma contracrítica aos dois grupos. Considero que a fragilidade da crítica dos conservadores está em persistir na visão de um mundo homogêneo, onde todos compartilham de visões de mundo similares. Esse mundo me parece imaginário e não corresponde a nossa realidade, isso porque existe uma confusão interpretativa no argumento dos conservadores entre pluralidade e relativismo. Por sua vez, penso que os progressistas precisam fazer uma releitura histórica da própria luta de classes. Classe também é um demarcador de identidade. As pautas identitárias e as lutas socias não se excluem, elas se atravessam, como diz Silvio Almeida. Os marginalizados por sua identidade, em sua maioria, foram excluídos economicamente. Portanto, existem muito mais semelhanças do que contrariedades entre a luta por reconhecimento e a luta de classes.

Por fim, quero destacar que as críticas dos conservadores e dos progressistas são mais bem interpretadas lendo-se o “espírito do tempo” do neoliberalismo contemporâneo. Como ensina Pierre Dardot e Christian Laval em A Nova razão do mundo, o sujeito neoliberal, que também é pós-moderno, é um sujeito fragmentado, individual, narcisista e concorrencial. Os meios de reificação são cada vez mais sofisticados, as pautas de lutas são transformadas em produtos comerciais. Líderes sociais viram influenceres de companhia empresariais. A luta virou engajamento. A política é substituída por marketing comercial e os debates políticos e sociais viram debates morais. O grande perigo que percebo é a contaminação por uma racionalidade individualista, estamental ou tribalista, como se decisões individuais e grupais não afetassem o coletivo. É preciso substituir o “eles que lutem” por “lutemos juntos”.

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