Região Tocantina – Qual é a real importância da literatura para a vida de uma pessoa?
Helena Frenzel – Olha, eu percebo a literatura como tendo um papel fundamental tanto na vida individual como na vida social das pessoas. Quanto mais baixo na pirâmide de classes sociais uma pessoa nasce, mais benéfico será para ela o contato com a leitura e com a literatura, que é o que nos ajuda a formar um pensamento próprio e crítico. Uma das funções da literatura é manter um tipo de diálogo, uma conversa que depende muito da forma e da linguagem, porque se um autor ou autora pretende falar com um número maior de pessoas, é preciso usar uma linguagem acessível para o público que ele ou ela deseja atingir. E linguagem acessível não é necessariamente sinônimo de linguagem pobre, como muitos poderiam supor. Muito pelo contrário, uma linguagem acessível é algo difícil de se conseguir. É preciso conhecer a fundo um tema para poder falar sobre ele de maneira simples. Para a formação de leitores também é crucial ter acesso aos textos, e também professores que, com seu exemplo, contagiem os alunos com seu amor pelos livros. Por isso os programas de leitura nas escolas e bibliotecas são essenciais, precisam continuar existindo. No antigo segundo grau, em uma escola pública, lembro que tive uma professora de português que mudou minha vida para sempre, simplesmente porque ela lia em voz alta as redações da turma como se fossem parte de um texto literário. A atitude dela me mostrou que o certo é tirar a literatura do pedestal que muitos tendem a colocá-la nas escolas, como se fosse algo inacessível a simples mortais como nós, e trazê-la para o dia a dia da sala de aula como algo perfeitamente natural. Se eu nunca tivesse tido acesso a livros na minha infância e adolescência, eu não seria nem de longe quem sou. Sempre tive uma curiosidade aguçada pelo mundo e, por ser pobre, a única possibilidade que eu tinha de conhecer outras realidades era por meio dos livros. Acompanhando o crescimento da minha filha num país onde não faltam bibliotecas e programas de incentivo à leitura, pude comprovar o quanto a literatura é importante para o desenvolvimento individual da capacidade de ler e compreender o mundo. Comecei a levá-la para bibliotecas e saraus de livros infantis quando ela não tinha nem dois anos e meio, e ela sempre prestou atenção a tudo o que era lido. Eu sempre li para ela em voz alta todos os dias, desde a gravidez, pois ainda em gestação a criança, num determinado momento, começa a captar e reconhecer sons. A leitura em voz alta também ajuda na concentração, no desenvolvimento da audição, no aprendizado das línguas e, claro, ajuda a liberar a fantasia. Ela agora está com dez anos e continua cultivando o hábito de ler diariamente, mesmo com a forte concorrência das mídias. Regularmente ela vai à biblioteca do bairro e sempre traz novos livros. Todos os dias ela lê um pouco antes de dormir e, por conta desse hábito, os livros vão sendo devorados e as histórias que eles trazem vão sendo incorporadas à nossa história, pois temos o hábito de conversar sobre elas. Se eu não tivesse nunca tido contato com livros na infância, se eu não tivesse tido contato com pessoas que promoviam a leitura e que sempre tinham histórias interessantes para contar, certamente eu teria precisado de muito mais tempo para perceber que tudo está interligado: matemática, filosofia, música, cultura popular, política, sociologia, tudo! Enfim: a literatura abriu meus olhos para o mundo e me facilitou bastante a vida!
Região Tocantina – Você tem formação em área técnica, mesmo assim tem uma forte relação com a literatura e as ciências humanas. Essa coisa de separar as áreas não é prejudicial?
Helena Frenzel – Certamente. Será que hoje em dia ainda é possível separar uma área da outra? Acho que o conjunto de todo o nosso conhecimento, em algum ponto, se entrelaçou de uma maneira tal que fica quase impossível tentar separar as coisas. Por exemplo, no meu curso de computação, na UFMA, tínhamos disciplinas tais como filosofia, antropologia, psicologia, etc. Todas essas disciplinas, pra mim, foram importantes. Estávamos aprendendo como escrever algoritmos, mas para escrever bons algoritmos é preciso compreender as pessoas e os sistemas em que estamos inseridos. Ou seja, na minha época de estudante já existia uma forte ideia de interdisciplinaridade, ideia que só se fortaleceu e hoje está quase que automaticamente em tudo o que faço. Ao estudar ciência da computação e linguagens de programação, fui apresentada à linguística, e ao estudar inteligência artificial me vi mergulhada em questões éticas e filosóficas que me fizeram até mudar de área, me permitiram reconhecer e assumir a minha verdadeira vocação, que é a literatura. O que eu acho mais prejudicial não é nem tanto a suposta separação das áreas, mas os preconceitos e, principalmente, o sistema de mercado, que nos impede de estudar aquilo que realmente gostamos porque o modelo capitalista valoriza apenas o que “dá dinheiro”. Porém, infelizmente, uma coisa devo dizer: se minha primeira formação no Brasil tivesse sido em Letras, muito provavelmente eu não teria tido condições financeiras de seguir me desenvolvendo como eu queria, pois os melhores salários, e olhe que eu não disse “os melhores empregos”, se encontram na área de tecnologia, o que é injusto aliás, pois as ciências humanas são tão ou até mais importantes e necessárias que qualquer outra área, principalmente para a nossa sobrevivência como espécie neste planeta. Aqui na Europa, por exemplo, a mistura de áreas, línguas e culturas é vista como algo muito positivo, um fenômeno natural que deve ser aproveitado, fomentado e promovido.
Região Tocantina – Qual o papel dos clássicos nos dias de hoje?
Helena Frenzel – Os clássicos são “clássicos” porque são sempre atuais. É um tipo de texto que se pode ler e reler n-vezes e em todas as releituras se encontra algo que pode ser aplicado à época em que se vive ou à história pessoal de quem o está lendo, ou mesmo nos ajudam a prognosticar o futuro. Os clássicos são “clássicos” porque tratam do cerne do que significa “ser humano”, que é o que nunca muda ao longo da História, creio eu. Eles podem até ter uma linguagem complexa e rebuscada, mas o prazer de desvendar o sentido faz com que eles continuem sendo lidos e seus autores e autoras continuem sendo admirados e estudados. Tive um professor de matemática que certa vez me disse que os grandes problemas matemáticos na verdade são poucos, dado que podem ser reduzidos a um conjunto finito de problemas fundamentais. Isso quer dizer que há um núcleo de problemas matemáticos que permanece em aberto desde que alguém começou a registrar seus pensamentos sobre eles, e o mesmo se dá com os problemas “humanos” tratados nos clássicos. Em se tratando de humanidade, acho que é mais ou menos como está no Eclesiastes: “Não há nada novo sob o sol”. No entanto, é preciso saber como apresentar os clássicos para quem nunca teve contato com eles e é preciso ter muita calma nessa hora, já que o que queremos é despertar o gosto pela leitura nas pessoas e não traumatizá-las com textos inacessíveis. Uma ideia muito boa são os grupos de leitura coletiva que se formam espontaneamente na internet. Dizem que os brasileiros não leem, mas o que vejo são pessoas na internet tratando de se reunir para ler, entender e discutir os chamados clássicos da literatura mundial.
Região Tocantina – Literatura pode ampliar, realmente, a sensibilidade?
Helena Frenzel – Completamente. A literatura permite que nos coloquemos no lugar do outro. Que sintamos o que ele sente, que vejamos o mundo sob o ponto de vista dele. A literatura nos ajuda a desenvolver empatia e a pensar mais no coletivo, a pensar em mundos alternativos, em alívios para os problemas mais internos da alma e das sociedades. Um texto pode despertar nossa sensibilidade para a música, já que os textos também têm um ritmo, um tom, uma melodia, e também para as artes em geral, pois livros falam de livros, de peças, de esculturas, de obras de arte, da complexidade humana. Textos podem ser sinestésicos, podem nos ajudar a entender ou a experimentar uma obra de arte, como um quadro de Miró ou uma escultura de Michelangelo, por exemplo, ou mesmo um jogo de amarelinha, como fez Cortázar em seu famoso livro. Não é bem o texto em si que transforma uma pessoa, são as diferentes experiências de leitura. Há n-possibilidades num texto de se fornecer experiências aos leitores. E também a questão visual é estimulada, pois as imagens que se criam na cabeça de uma pessoa enquanto ela está lendo um texto, numa determinada ocasião, é única, só existe na cabeça dela naquele momento, e é por isso que nenhuma experiência de leitura é igual a outra e jamais pode ser reproduzida ou explicada completamente. Isso é o que diferencia a literatura de outras formas de arte, como o cinema, por exemplo. A gente assiste a um filme e guarda na cabeça as imagens do filme, que são as imagens de quem escreveu o roteiro, atuou no filme, dirigiu e produziu, não as nossas próprias imagens. Não é à toa que muitos escritores e escritoras têm uma lista de músicas que põe para tocar enquanto escrevem, é uma forma de tentar criar aquela voz e atmosfera única que cada texto terá ao final. Enfim, em se tratando de vida e arte, tudo está interligado.
Região Tocantina – O que você recomenda para quem quer começar um percurso de leitor de literatura?
Helena Frenzel – O tio de um amigo gostava de dizer que há dois tipos básicos de pessoas: as pessoas do tipo batata e a pessoas do tipo melancia. As melancias estão espalhadas pela terra, seus segredos estão expostos, não é preciso nenhum esforço para desvendá-los. Já as pessoas do tipo batata, estas se escondem sob a terra, é preciso cavar para desenterrá-las e conhecer seus segredos. Assim como as pessoas, também os livros. Há aqueles que não exigem muito esforço para serem desvendados, enquanto que outros precisam ser tirados de seus esconderijos, desencavados, desenterrados. Um não é melhor do que o outro, são apenas tipos diferentes. Se você nunca leu um livro, sugiro começar com leituras leves, seguindo o conselho do Apóstolo Paulo que diz que se a pessoa não é acostumada a comer carne, que comece tomando leite. Eu começaria por uma canja, depois iria comendo coisas mais sólidas, pouco a pouco. Comece lendo gibis, por exemplo, ou novelas gráficas, romances de poucas páginas escritos para um público juvenil, adaptação de clássicos, revistas, enfim: o importante é ler algo de que se goste, nunca ler algo por obrigação ou para que os outros pensem que você é culto/a. Isso é bobagem! O importante, na leitura, é ter prazer e espontaneidade. Creio que para cada tipo de pessoa no mundo existe um texto que poderá fazer com que ela, sozinha, descubra o prazer da leitura. Sugiro que comece devagar, escolha um livro, leia uma página, depois a próxima, e tente descobrir o que o texto está tentando lhe dizer, enfim: dê uma chance para que o livro o seduza, mas tudo numa boa, no prazer, sem cobranças. Não gostou de um livro? Tente com outro, o importante é seguir tentando até que um dia você tope com aquele texto que vai transformar a sua vida. Não acredita em amor ao texto à primeira linha? Acontece. Mas assim como acontece na busca de um companheiro, companheira ou companheire para a vida, o negócio é seguir tentando, e se entregando à busca, sem medo de ser feliz.
Região Tocantina – Na sua avaliação, quais os maiores benefícios da literatura?
Helena Frenzel – Nossa, tantos! A pessoa aprende sobretudo a ouvir, desenvolve a capacidade de concentração e empatia, enriquece o vocabulário, desenvolve a capacidade crítica de ler e compreender o mundo e as diferentes culturas, passa a ver que os problemas dela não são os únicos no mundo, que várias outras pessoas passam ou já passaram por problemas parecidos, que sentem e pensam coisas semelhantes, que reagem mais ou menos como a pessoa reagiria, ou muitas vezes dão a ela uma perspectiva totalmente nova de como sair de uma determinada situação, ou de como agir ou de como se comportar. Os livros também revelam estratégias de sobrevivência, pois estão cheios de experiências já vividas ou tentadas. Os livros são sempre uma excelente companhia, seja nas filas, no tempo de vida que gastamos nos deslocando daqui para acolá nos trens, nos ônibus. Um livro nos livra de nos metermos em tretas, pois ao invés de ficar perdendo tempo com discussões inúteis em redes sociais, podemos abrir um livro ou uma página na web e em poucas páginas conhecer a história da vida de uma pessoa, aprender com a experiência dela, ou simplesmente rir das confusões em que ela se mete e ver como ela se sai. Sobretudo, a literatura nos ajuda a desenvolver a capacidade de pensar com a própria cabeça, de perguntar quem somos, por que as coisas são assim e o que pode ser mudado, nos leva a montar as peças do quebra-cabeças da nossa própria identidade, como indivíduos e como humanidade. Na parede de uma das bibliotecas que frequento tem uma frase que eu gosto muito. Não recordo a autoria, diz mais ou menos assim: “Quem não lê tem que acreditar em tudo o que lhe dizem”. Acho que é isso: a pessoa não lê, não é capaz de juntar lé com cré e acaba acreditando nos piores absurdos. Eu sou mais São Tomé: quero ler para compreender, pensar com a minha própria cabeça e decidir se vale a pena crer ou não nas coisas que me contam.
2 respostas
Bravo, Helena Frenzel, bravíssimo. Segue plantando livros e incentivando a leitura, a colheita será bendita!
Helena, que prazer te “reencontrar”… Esta sua entrevista deveria ser amplamente divulgada, pois desperta de forma criativa o desejo de ler. Batata ou melancia? Só sendo São Tomé para decifrar…