Sou um daqueles muitos garotos nascidos no início da década de setenta do século XX. Eu e minha geração sofremos na pele muitas das dores, decepções, gritos e silêncios que cercaram aquela época. Muito jovens, não conseguíamos atentar para as radicais mudanças que ocorriam a nossa volta. Política, economia e as diversas questões sociais passavam diante de nossos olhos e ouvidos, mas não tínhamos ainda discernimento para saber o que estava acontecendo. Um sentimento de inocência parece que nos protegia de quase tudo, menos da fome e do medo.
Quando cheguei à idade prevista, fui levado para a escola. Minha família matriculou-me no Centro de Ensino número 02, na cidade satélite do Gama, onde morávamos em uma casa alugada. Rapidamente fui alfabetizado e comecei a ver que havia um outro universo que se escondia por trás das palavras. As sextas-feiras tinham para mim um sabor especial: era quando minha turminha era levada para uma sala na qual havia uma televisão e onde todos nós, durante aproximadamente uma hora, nos divertíamos com as peripécias lobatianas vertidas para a tela nos episódios do Sítio do Pica-Pau Amarelo.
A miopia em alto grau me levava a sentar bem próximo à TV. Ali, a imaginação daquele garoto magrinho e de poucas conversas ganhava asas. A professora, de cujo nome infelizmente não me lembro, transformava uma simples sala em um paraíso para quem começava a apaixonar-se pelas palavras, pelas cores e pelos sons. Durante sessenta minutos, Emília, Pedrinho, Narizinho, Tio Barnabé, Visconde de Sabugosa, Cuca, Saci, Tia Nastácia, Dona Benta e todas as demais personagens do Sítio transformavam-se em meus melhores amigos.
Anos depois, as circunstâncias levaram-me para morar no Parque Estrela Dalva, no município de Luziânia. Foi ali que comecei a colecionar meus primeiros amigos de verdade, pessoas que não eram fruto da imaginação, nem de uma tela de televisão. João Batista, Domingos, Isabel, Raimundo, Airton, José Geraldo, Lady, Luzia, Aparecida, Messias, Carlinhos, Chico, Lurdinha, Leodaldo e muitas outras pessoas que viverão eternamente em minha memória, todos mais ou menos da mesma idade, começaram a me fazer entender que o mundo é feito de bifurcações e de encruzilhadas, e que nem todos os caminhos voltarão a convergirem para um mesmo ponto.
Naquele colégio pequeno, onde só era possível estudar até à antiga quinta série, encontrei professoras maravilhosas que acabaram me mostrando o caminho das letras dos números e das ciências. Eu queria estudar um pouco mais. E, para fazer isso, tinha que todos os dias acordar às quatro e meia da madrugada, andar no escuro uns três mil metros, pegar um ônibus e rodar mais de quarenta quilômetros até chegar à minha nova escola: Alceu de Araújo Roriz, onde também fui muito feliz. Que bela experiência estudar ali.
Mas antes disso, fui capturado pelas armadilhas da leitura. Eu e meus colegas não tivemos a sorte de ter brinquedos caros, viagens, férias em lugares distantes. Tivemos sim, muitos bons momentos de amizade, muitos jogos de queimada, de futebol, muitos mergulhos em rios. E quase todos, cada um a seu modo, aprendemos a transformar palavras em interessantes e indestrutíveis brinquedos. Foi aos nove anos que o primeiro livro completo (fora os didáticos) caiu em minhas mãos e meus olhos trataram de devorá-lo. Mas que livro seria esse que acabaria me transportando ao mundo mágico das palavras escritas?
Foi uma edição adaptada de A Tulipa Negra, de Alexandre Dumas. Como até hoje tenho o livro e ele está à minha frente no momento em que escrevo, posso afirmar que se trata de uma edição em capa dura da Editora Melhoramentos, com adaptação feita por Luís Taddeo, capa e ilustrações de Juvenal R. da Silva Ramos. O volume é o 19° título da coleção Obras Célebres publicada por aquela editora em 1968. Uma raridade que me acompanhará até meus últimos dias.
A capa traz em destaque o rosto do vilão da história secundado pela imagem dos protagonistas da obra: o doutor Cornélio Van Baerle e a doce e bela Rosa. Para uma criança que começava sua caminhada nos terrenos da ficção, enfrentar as 120 páginas daquele livro era um desafio e tanto. As palavras pareciam que nunca chagavam ao fim, mas a história bem construída, cheia de peripécias, o estilo fluido de Dumas, as belas ilustrações e a competente adaptação fizeram com que o desafio inicial se transformasse em um prazer inenarrável.
Avidamente, acompanhei a o árduo trabalho de Cornélio para conseguir produzir uma tulipa negra, os primeiros contatos dele com Rosa, a vilania de Boxtel e de Grifo, os sofrimentos do protagonista na cadeia e as inúmeras dificuldades enfrentadas por Cornélio para tentar conquistar tanto a mulher amada quanto o prêmio oferecido para quem conseguisse cultivar uma tulipa negra.
Lembro que o livro passou também pelas mãos de meus companheiros de jornada e que nós comentávamos animadamente aquele mirabolante enredo. Acabávamos de descobrir que as palavras têm o poder de transportar pessoas para lugares inimagináveis e para tempos inatingíveis, viajamos para a Holanda do século XVII, descobrimos que o bem e o mal estavam sempre lado a lado e que a linha que os separa é muito tênue.
Não. Não irei resumir ou analisar o livro. Para mim ele é mais que um livro. É um preciosíssimo pedaço de meu passado, de algumas de minhas mais belas recordações. Nas páginas desse livro há mais que palavras, há também a presença de meus amigos de infância e momentos de uma inocente alegria. Mas espero que alguém leia esse romance em uma das diversas versões disponíveis hoje, inclusive na internet, gratuitamente.
Naqueles tempos difíceis, fui um dos poucos garotos daquele grupo a continuar estudando, fiz da palavra o meu sustento físico e espiritual, li algumas centenas de livros, escrevi algumas páginas e guardei como verdadeira relíquia aquele livro que chegou à minhas mãos, me pegou pelo braço e ajudou aquele menino de olhos triste e de baixa visão a enxergar o mundo de tantos outros modos.
Como não agradecer a tanta gentileza?