Consta do noticiário que um paciente foi torturado e morto no último dia 5 de julho de 2024 em uma clínica de reabilitação na grande São Paulo, mais precisamente no município de Cotia. A clínica atende pelo nome de Comunidade Terapêutica Efata, sendo a vítima Jarmo Celestino de Santana, então com 55 anos de idade. As sessões de tortura foram filmadas pelo principal suspeito, um funcionário da clínica que, de acordo com a prefeitura local, operava na ilegalidade[i].
Esse lamentável e abjeto caso servirá de pano de fundo para o texto da coluna de hoje, no qual se abordará o crime de tortura, destacando os aspectos penais mais relevantes dessa infração penal, conforme disposto na Lei nº 9455/1997.
Lamentavelmente, quando se fala de tortura, é inevitável a conexão com toda a tradição brasileira, especialmente no que diz respeito à atuação estatal no campo político e penal. Não importa se durante os regimes ditatoriais do Estado Novo (1937-1945) ou do Regime Civil-militar (1964-1985) ou até mesmo na fase pós-democrática (de 1988 até os dias atuais), a prática da tortura segue presente em nosso cotidiano.
“Em relação aos aspectos culturais, é importante registrar que o mito da cordialidade brasileira, historicamente, jamais excluiu o autoritarismo e a violência do convívio social, já que a nossa sociedade, aparentemente, sempre foi identificada pelas atitudes extremas e pela violência como uma prática comum da convivência social. Na verdade, a história demonstra que, na grande maioria das vezes, os brasileiros estiveram dispostos a exercer suas ações de forma arbitrária, esquecendo os meios legais de coerção, agindo em descompasso com os padrões legais e com a ordem pública” (Silveira, Felipe Lazzari da. A tortura continua. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 72).
Sem parecer redundante, a colonização brasileira fornece muitos elementos para o estudo da temática. Basta ver como os povos tradicionais e os africanos foram tratados pelos colonizadores durante período histórico violento e atroz da história brasileira.
Sobre a Lei nº 9455/1997, ela atende a um mandado de criminalização constante do Texto Constitucional, que equipara o crime de tortura aos crimes hediondos. Neste sentido, o rigor penal e processual penal constante da Lei nº 8072/1990 (a Lei dos Crimes Hediondos) também se aplica, salvo disposição expressa em sentido contrário, aos delitos de tortura.
A tortura, nos termos da legislação brasileira, pode ser praticada por qualquer pessoa e contra qualquer pessoa. Trata-se, segundo classificação doutrinária, de um crime comum, destoando da definição contida no artigo 1º da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes: “Para os fins da presente Convenção, o termo “tortura” designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram”[ii].
Entretanto, não há falar em qualquer tipo de conflito entre normas, dado que a própria convenção estabelece em seu artigo 2º que a norma mais favorável ao ser humano deverá prevalecer, caso o disposto na convenção seja menos abrangente em termos de proteção contra a prática da tortura. Tem-se, portanto, a consagração do princípio pro persona ou pro homine (que para muitos doutrinadores funciona como espécie de princípio geral do Direito).
Referido entendimento encontra plena guarida na jurisprudência dos tribunais superiores brasileiros, valendo colacionar a ementa do seguinte julgado:
“RECURSO ESPECIAL. ACÓRDÃO A QUO QUE DESCLASSIFICOU A CONDUTA PERPETRADA PELOS RECORRIDOS DE CRIME DE TORTURA-CASTIGO (ART. 1º, II, DA LEI N. 9.455/1997) PARA O CRIME DE LESÃO CORPORAL GRAVE. VIOLAÇÃO DO ART. 1º, II, DA LEI N. 9.455/1997. RECURSO QUE OBJETIVA O RESTABELECIMENTO DA CONDENAÇÃO. IMPROCEDÊNCIA. CRIME PRÓPRIO, QUE SÓ PODE SER PERPETRADO POR AGENTE QUE OSTENTE POSIÇÃO DE GARANTE (OBRIGAÇÃO DE CUIDADO, PROTEÇÃO OU VIGILÂNCIA) COM RELAÇÃO À VÍTIMA. 1. O conceito de tortura, tomado a partir dos instrumentos de direito internacional, tem um viés estatal, implicando que o crime só poderia ser praticado por agente estatal (funcionário público) ou por um particular no exercício de função pública, consubstanciando, assim, crime próprio. 2. O legislador pátrio, ao tratar do tema na Lei n. 9.455/1997, foi além da concepção estabelecida nos instrumentos internacionais, na medida em que, ao menos no art. 1º, I, ampliou o conceito de tortura para além da violência perpetrada por servidor público ou por particular que lhe faça as vezes, dando ao tipo o tratamento de crime comum. 3. A adoção de uma concepção mais ampla do tipo, tal como estabelecida na Lei n. 9.455/1997, encontra guarida na Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, que ao tratar do conceito de tortura estabeleceu -, em seu art. 1º, II -, que: o presente artigo não será interpretado de maneira a restringir qualquer instrumento internacional ou legislação nacional que contenha ou possa conter dispositivos de alcance mais amplo; não há, pois, antinomia entre a concepção adotada no art. 1º, I, da Lei n. 9.455/1997 – tortura como crime comum – e aquela estatuída a partir do instrumento internacional referenciado. 4. O crime de tortura, na forma do art. 1º, II, da Lei n. 9.455/1997 (tortura-castigo), ao contrário da figura típica do inciso anterior, não pode ser perpetrado por qualquer pessoa, na medida em que exige atributos específicos do agente ativo, somente cometendo essa forma de tortura quem detiver outra pessoa sob sua guarda, poder ou autoridade (crime próprio). 5. A expressão guarda, poder ou autoridade denota um vínculo preexistente, de natureza pública, entre o agente ativo e o agente passivo do crime. Logo, o delito até pode ser perpetrado por um particular, mas ele deve ocupar posição de garante (obrigação de cuidado, proteção ou vigilância) com relação à vitima, seja em virtude da lei ou de outra relação jurídica. 6. Ampliar a abrangência da norma, de forma a admitir que o crime possa ser perpetrado por particular que não ocupe a posição de garante, seja em decorrência da lei ou de prévia relação jurídica, implicaria uma interpretação desarrazoada e desproporcional, também não consentânea com os instrumentos internacionais que versam sobre o tema. 7. No caso, embora a vítima estivesse subjugada de fato, ou seja, sob poder dos recorridos, inexistia uma prévia relação jurídica apta a firmar a posição de garante dos autores com relação à vítima, circunstância que obsta a tipificação da conduta como crime de tortura, na forma do art. 1º, II, da Lei n. 9.455/1997. 8. Recurso especial improvido” (STJ, 6ª Turma, REsp 1.738.264/ DF, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 23/08/ 2018, DJe 14/09/ 2018).
A Lei nº 9455/1997 contempla as seguintes espécies de tortura: a)tortura-crime (praticada para obrigar a vítima ou terceira pessoa a cometer um delito); b)tortura-prova (a vítima é torturada para que confesse a prática de um crime ou preste alguma declaração); c)tortura-discriminação (motivada por questões de preconceito religioso ou étnico); d)tortura-castigo/correção; e)tortura contra pessoa sujeita a medida de segurança ou pena privativa de liberdade; f)tortura-omissão de quem poderia evitar o crime ou apurar a sua prática[iii].
O Sistema de Justiça ainda tem muito caminho pela frente, mas é possível que a tortura sofrida por Jarmo se enquadre na previsão legal do artigo 1º, §1º, da Lei nº 9455/97: “na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal”. Afinal, o suposto autor do crime exercia um poder de fato sobre a vítima (paciente de uma clínica de reabilitação).
Essa relação de poder precisa decorrer de uma relação entre o Estado (por meio de seus agentes) e um particular? A resposta é negativa. Afinal, “nesse caso, há um vínculo de submissão que decorre de um poder circunstancial exercido pelo torturador sobre a vítima (v.g., cuidadora, em relação ao idoso)” (Lima, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal comentada. Salvador: Editora Juspodivm, 2020, p. 999).
Diante de mais um fato lamentável, resta aguardar que o Sistema Penal apure os fatos e as respectivas responsabilidades criminais de todos os envolvidos, sem violações a direitos fundamentais e com seriedade investigativa.
Até a semana que vem.
[i] Para maiores informações: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2024/07/10/donos-de-clinica-em-sp-em-que-paciente-foi-torturado-e-morreu-dizem-que-nao-estavam-no-local-no-dia-do-crime.ghtml
[ii] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0040.htm
[iii] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9455.htm