quarta-feira, 30 de abril de 2025

INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS: O FAMILIAR E O ESTRANHO DA LINGUAGEM

Publicado em 25 de fevereiro de 2024, às 10:14
Fonte: Nertan Dias Silva Maia Professor da UFMA Doutor em Filosofia [email protected]

Unheimlich é o nome de tudo que deveria ter

permanecido secreto e oculto mas veio à luz.

(Friedrich Schelling)

A Psicanálise nos mostra que há duas formas de percepção fundamentalmente opostas entre si nos processos mentais: a percepção de superfície e a percepção de profundidade, que ocorrem, respectivamente, nos planos consciente e inconsciente. Essa segunda forma de percepção não só foge ao controle das formas conscientes, como também é regida por leis próprias, às quais a percepção de superfície não tem acesso.

Quando a mente de superfície está em pleno estado de vigília, nossos sentidos ficam centrados na vida material e se esforçam (ou são forçados) em se concentrar nas formas mais pregnantes e simples possíveis; ou seja, nossos sentidos focam nas formas visuais que se impõem à nossa atenção pela força de sua simplicidade e estabilidade estruturais.

Entretanto, quando nossos sentidos ficam absortos em uma contemplação estética, em uma fantasia ou em um sonho – objeto central de nossa discussão –, há um embotamento significativo na mente de superfície que nos leva a um desligamento das formas pregnantes. Tal embotamento é movido pela energia que emana da mente de profundidade, acarretando um processo segundo o qual as formas definidas pela realidade material ficam mais fluidas. Nessa configuração, as formas passam a se movimentar em um fluxo contínuo de imagens mentais que se entrelaçam entre si, ou bem para representar aspectos difusos da realidade (como, por exemplo, as cenas oníricas compostas por objetos reconhecidamente reais, mas que não o são de fato ou não se comportam como tais); ou bem para separar os conteúdos objetivos dos subjetivos, formando uma realidade fantástica inteiramente divorciada dos dados da consciência.

Nesse instante, devido ao conteúdo inconsciente estar em evidência, surge um novo princípio da forma que nega parcial ou completamente o princípio da realidade, uma vez que este não mais se mostra suficiente para decifrar os significados dessa nova maneira de perceber (ou de conceber) as coisas e o mundo. Isto promove um estado mental no qual a imprecisão, a difusão e a ambiguidade tomam o lugar da precisão, da simplicidade e da não-ambiguidade, como afirma Anton Ehrenzweig, em sua obra Psicanálise da percepção artística (1977).

Este estado mental é o mesmo verificado nas visões oníricas acerca das quais Freud se refere em seu famoso escrito A interpretação dos sonhos (1900), onde afirma serem os sonhos “a via régia para o inconsciente”, pois nos permitem acessar desejos e sentidos que não são possíveis enquanto estamos acordados.

Para Freud (1900), a interpretação dos sonhos não só torna possível o desvelamento de sua lógica específica, como também estabelece uma comunicação com nossa percepção de profundidade, a qual possui regras próprias que variam em cada indivíduo. São essas regras que canalizam nossos desejos mais profundos para nossos sonhos. Estes desejos, por sua vez, dificilmente são explicitados por nossa consciência, salvo por um “ato falho”, ou seja, por um gesto ou fala que externamos inadvertidamente contra nossa intenção consciente, tal como explica Freud no escrito Psicopatologia da vida cotidiana (1901).

No ensaio A direção do tratamento e os princípios de seu poder (1958), Lacan complementa esse argumento freudiano afirmando que a lógica dos sonhos não é instituída como algo oposto à consciência, pois, apesar das leis que orientam essa lógica serem embasadas em sentidos imperceptíveis à consciência, elas se relacionam com fatos vividos pelo sujeito. Segundo Lacan (1958), por remeterem a experiências pretéritas, estes sentidos devem ser interpretados como efeitos de metáforas, já que os sonhos não se mostram tão claros à realidade, mas antes como uma relação de substituição de algo aparente por algo oculto e muitas vezes contrário. Os sentidos dos sonhos, entretanto, só nos chegam à consciência a posteriori, já que dependem sempre de uma narrativa para serem interpretados em estado de vigília.

Nessa condição, as diferenças entre as percepções de superfície e de profundidade, articuladas com a produção subsidiária de memórias oníricas nesse estado de vigília, são muito mais sentidas exatamente por realçarem uma nítida discrepância com o real (Ehrenzweig, 1977). Contudo, mesmo que os sonhos reflitam o conteúdo do inconsciente, só podemos acessá-los e interpretá-los através da linguagem partilhada, sendo o próprio sonhador o primeiro intérprete de seus sonhos. Ele faz isso mediante a associação livre, relacionando imagens oníricas com palavras para chegar a um certo significado. Somente após essa partilha é possível reunir material substancial para uma interpretação bem dirigida.

É importante ressaltar que a assimilação da linguagem acorre de maneira diversa nos processos de interpretação dos sonhos, tendo em vista a variedade de usos das palavras pelos indivíduos e a impossibilidade de padronizá-las em um único entendimento. Nesse sentido, Lacan orienta que, para sermos fiéis à descoberta freudiana do inconsciente, não devemos nunca procurar uma interpretação total dos sentidos e significados dos sonhos. Quanto a isso, Freud nos ensina que o inconsciente deixa ver seu conteúdo em um sonho apenas em parte, geralmente a parte que não foi ainda traduzida pela palavra, sendo, portanto, um material que foge à compreensão do sonhador e mesmo do psicanalista. Nessa relação, ambos intuem que o sonho, como afirma Lacan (1958), é feito para o reconhecimento do desejo, e o desejo, por seu turno, só é captado na interpretação.

Assim, a interpretação de um sonho se situa a meio caminho entre o sujeito e o mundo, entre o subjetivo e o objetivo, e seu sentido só se formula na conjunção da imagem onírica com a palavra. Por isso, interpretar um sonho requer um livre e sutil trânsito entre as percepções de superfície e de profundidade, pois enquanto forma, o sonho é feito da coexistência de informações contingentes e fantásticas, mas enquanto conteúdo abrange o imponderável do ser desejante, refletindo a relação entre aquilo que lhe é estranho e ao mesmo tempo familiar. O sonho seria, então, uma das formas que o inconsciente encontra para representar a um só tempo tudo aquilo que nos é familiar e agradável, por um lado, e estranho e assustador, por outro.

Em seu ensaio O infamilar (Das Unheimliche, 1919), Freud se utiliza das palavras do filósofo idealista alemão, Friedrich Schelling (1775-1854), para definir o conceito de “estranho” (ou “infamiliar”) como “tudo o que deveria ter permanecido secreto, oculto, mas veio à tona”. Freud nos remete aos recalques que deveriam continuar esquecidos no inconsciente, mas que retornam em forma de sintoma para nos assombrar, tendo a via onírica como uma das mais livres para extravasar nossos desejos e frustrações.

Na edição de 1911 de A interpretação dos sonhos, Freud afirma que o sonho não conhece nem a oposição (Gegensatz) nem a contradição (Widerspruch), estando muito mais próximo do que é complexo (Komplexe), ou seja, daquilo que reúne em si ideias dicotômicas, sem que haja necessariamente a exclusão de uma em favor de outra. Aqui está implícita a tese freudiana segundo a qual a negação não opera no inconsciente, ideia que remete precisamente à relação conceitual que Freud enfatiza em seu ensaio O infamilar, onde demonstra como a palavra alemã heimlich, que quer dizer “doméstico”, “familiar” ou “íntimo”, também evoca seu oposto Unheimliche, que significa “secreto”, “desconhecido” ou “infamiliar”.

Nesse contexto, em seu artigo Sobre o sentido antitético das palavras primitivas (1910), Freud sustenta que o sonho prescinde da negação (Verneinung) e se expressa por meio de recursos figurativos que supostamente podem denotar seu significado contrário, tal como já intuíam os intérpretes de sonhos da Antiguidade. Portanto, é preciso, antes de tudo, conhecer etimologicamente as palavras para saber empregar seus sentidos antitéticos, se quisermos uma interpretação dos sonhos razoável, pois, na conclusão de Freud (1910), “entenderíamos melhor a linguagem do sonho e o traduziríamos com mais facilidade se soubéssemos mais sobre o desenvolvimento da linguagem”.

Referências:

EHRENZWEIG, Anton. Psicanálise da percepção artística: uma introdução à teoria da percepção inconsciente. Trad. Irley Franco. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.

FREUD, S. “Sobre o sentido antitético das palavras primitivas”. In: _______. O infamiliar [Das Unheimliche] seguido de O homem da areia. Trad. Ernani Chaves, Pedro Heliodoro Tavares e Romero Freitas. Belo Horizonte: Autêntica, 2019 [1910], p. 129-140.

FREUD, S. A interpretação dos sonhos. Obras Completas, Standart Edition Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Imago, v. IV, 1969 [1900].

FREUD, S. O infamiliar [Das Unheimliche] seguido de O homem da areia. Trad. Ernani Chaves, Pedro Heliodoro Tavares e Romero Freitas. Belo Horizonte: Autêntica, 2019 [1919], p. 27-125.

FREUD, S. Psicopatologia da vida cotidiana. Sobre esquecimentos, lapsos verbais, ações equivocadas, superstições e erros. Trad. Elizabeth Brose. Belo Horizonte: Autêntica, 2023 [1901].

LACAN, J. A direção do tratamento e os princípios do seu poder. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998 [1958].

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