quarta-feira, 23 de abril de 2025

LOURIVAL SEREJO: PESCADOR DE MEMÓRIAS

Publicado em 19 de fevereiro de 2024, às 21:07
Fonte: José Neres – Professor. Membro da AML, ALL, APB e da Sobrames-MA
Imagem cedida pelo autor.

Gosto de história. Não apenas daquela história ensinada nas escolas para garotos e garotas que nem sempre percebem que também fazem parte da história de seu povoado, cidade, estado ou país. Gosto da história de vidas que se cruzam em determinado momento e que talvez nunca mais se cruzem ou que, talvez, sigam paralelas durante um período para então somente de modo fortuito se encontrarem.

Dessa forma, não posso deixar de gostar dessas inúmeras histórias que foram vividas e que depois passam a povoar nossas recordações teimando em voltarem para o mundo palpável, nem mesmo que seja em conversas entre pessoas que se dizem de uma mesma geração ou de uma geração bem próxima. Ouvir essas conversas muitas vezes equivale a entrar em uma imaginária máquina do tempo e navegar por mares já navegados, mas nunca rememorados.

E quando essas impressões ganham a página de um livro e são imortalizadas por alguém que tenta domar verbos e versos na tentativa de cavalgar um passado particularizado, mas que diz respeito a toda uma coletividade que talvez não consiga colocar no papel ou na tela de um dispositivo eletrônico que um dia se esvairá com o sopro de nossa inevitável mortalidade terrena? Poder compartilhar os tempos, os lugares e as memórias que habitam adormecidas em cada um de nós é um gesto de generosidade, de uma generosidade literária sem limites.

Foi isso diversas vezes fez (e faz) o escritor Lourival Serejo, um homem que transformou Viana – sua terra natal – em foco de inúmeras revisitas em textos tanto em prosa quanto em verso. Como é o caso do livro Pescador de Memórias (Edições AML, 2013, 96 páginas). Mas essa Viana que habita o imaginário do escritor nunca foi comportada ao ponto de sossegar apenas em reminiscências e sutis recordações. A cidade sempre frequentou as páginas escritas por seu ilustre filho, como é o caso de, por exemplo, Do Alto da Matriz – Memórias (2001), O Baile de São Gonçalo (2002), Da Aldeia de Maracu à Vila de Viana (2007), Entre Viana e Viena – 100 crônicas escolhidas (2012).

Enquanto, em alguns livros, a Cidade ganha contornos de objeto de estudo e de foco de curiosidades e efemérides, em Pescador de Memórias o escritor revisita poeticamente alguns traços da construção de um próprio eu reflexivo e ligado à terra por forças que vão além da própria vontade. Em determinado momento, o eu lírico traz à superfície da página um menino a brincar à beira do lago e um homem maduro que se reflete nas águas e nos espelhos da vida, como pode ser visto abaixo.

Quando eu era menino

atirava cacos de telha

sobre e superfície do lago.

Eles deslizavam aos saltos até afundarem.

Hoje me lembro disso e penso:

sou um caco de telha

pulando sobre as águas da vida,

até não sei quando afundar.

(Um caco de telha, pág.35)

No poema, a imagem bucólica contrasta com uma angústia existencial e com a certeza de algo que por natureza é incerto. De algum modo, o menino do ontem e o homem do hoje travam uma luta silenciosa. Nem o lago, nem o caco de telha e nem mesmo os dois elementos humanos que habitam polos distintos de uma mesma existência são os mesmos. As reflexões trazem as marcas de uma incompletude dentro de algo que jamais pode ser visto de modo completo. O caco de telha pode até ser visto como objeto mínimo e vazio de significado, porém, dentro do poema, esse mesmo caco de telha é algo que falta em algo, mas que faz alguém resistir ao algo na busca de tornar-se alguém.

Aos poucos, nas páginas do livro, materializam-se não apenas os prédios, as praças e as ruas que compõem a Cidade, mas também pessoas que sutilmente deixam as sombras e sobras da memória e voltam a percorrer os caminhos que as imortalizaram. Mas, essas ruas e becos agora são formadas por palavras, versos e estrofes. Os poemas são curtos, na medida exata para demonstrarem a fragmentação da memória do eu lírico. São flashes de vidas que ancoram em outras vidas para não se perderam nos múltiplos turbilhões de um incômodo esquecimento, na enxurrada que “desce a ladeira do Canto do Galo” (pág. 47) ou nos “fios das recordações que apodreceram com o tempo” (pág. 45).

Pescador de memórias é um livro permeado de um lirismo inocente e ao mesmo tempo maduro. A inocência está nas palavras, na forma aparente simples dos versos e nas imagens mentais que vão de formando durante a leitura como se fossem traços aquareláveis de uns tempos idos, mas que teimam em ficar impressos nos olhos que desbastam cada folha do livro. A maturidade dos versos está no cuidado que o autor teve em evitar palavras e estruturas repletas de pieguice, como é muito comum em poemas que têm o telurismo como tema central.

Alguns pontos merecem um destaque especial nesse livro. Alguns desses pontos são trabalhados brilhantemente pelo professor mestre Joaquim Gomes, prefaciador da obra. O autor, imbuído do desejo de trazer ao leitor um pouco daquela cidade que está imersa em suas recordações de infância, apresenta, de modo sistemático, elementos que rementem a um topo urbano que tem a fragrância e as cores da vida no campo e à beira do lago.

Outro ponto a ser destacado é a constante presença do silêncio ao longo das páginas. Mesmo havendo a “badalação” e as onomatopeias que fazem os sinos das igrejas conversarem entre si (pág. 27), quase todos os poemas funcionam como a descrição de uma cena que poderia estar em um quadro, mas que se solidifica em forma de texto. Assim, a lua, o sol, os campos, os igarapés, as igrejas, as praças, os pescadores de tapiaca, os transeuntes e as ladeiras podem ser vistos de forma isolada. Todavia, quando colocados lado a lado, formam um grande e silencioso painel a ser apreciado em todos os seus detalhes. O que Lourival Serejo fez em Pescador de memórias não foi tão somente retirar trechos de suas recordações e colocá-los nas páginas de um livro, mas sim tecer iluminuras com palavras e traçar um mapa poético de uma cidade repleta de recordações e de silêncios.

Silêncio é, inclusive, o título de um dos mais pungentes poemas do livro, um cromo que pode retratar várias cidades em diverso pontos do planeta, mas que ganha maior densidade quando visto/lido/ouvido dentro das energias que emanam de uma terra natal, conforme pode ser visto abaixo:

O silêncio das águas paradas

a vastidão branca

imóvel

puxa a gente para dentro.

O vazio fala

o silêncio que se refugia

e se transforma em água. (pág. 31)

O livro Pescador de memórias é um passaporte para uma viagem no tempo e em aspectos de uma história que precisa ser resgata. É um roteiro lírico para uma visita a uma Viana que, mesmo não existindo mais, encontra-se eternizada nas inúmeras possibilidades da Poesia.

4 respostas

  1. “O silêncio das águas paradas
    a vastidão branca
    imóvel
    puxa a gente”
    Que lindo! Retrata apenas uma parte da grandiosa beleza da Baixada Maranhense!
    Parabéns ao autor das memórias e ao autor do texto.

  2. O Pescador de Memórias não só retrata lembranças , como nos leva a perceber um cotidiano cheio de naturalidade bem distante dos olhares de hoje. Em que tudo era pressentindo de forma mais simples; como o lago ,as ruas de pedras , o caco de telha jogado no lago, a canoa, enfim tudo aquilo que estava ao alcance da essência perceptiva do eu-lirico e que agora lhe causa estranhamento.

  3. Pescador de Memórias não só narra lembranças, como nos leva a perceber um cotidiano cheio de naturalidade , bem distante dos olhares de hoje. Um cotidiano pressentido de forma bem simples , porém poético , nos elementos da natureza como a cor do lago , a enxurrada da chuva que desce, o colorido das flores, o silêncio da cidade….
    Tudo isso era observado pelo eu- lírico , em sua infância, com sabor de simplicidade. E que agora , em seus versos , lhe causa estranhamento.

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