Este ano, comemoram-se os 200 anos de nascimento de Gonçalves Dias, o poeta mais importante da literatura brasileira, assim considerado pela crítica e pelo povo. Afinal, quem não sabe completar o trecho “Minha terra tem palmeiras (…)”? Nesta entrevista, o professor Weberson Grizoste, da Univeraidade Estadual do Amazonas (UEAM), que conheceu o poeta na adolescência e fez dele seu objeto de estudo do mestrado e doutorado, explica por que Gonçalves Dias, passados duzentos anos, ainda é necessário à literatura brasileira. Vale a leitura!
Região Tocantina – Como se deu seu encontro com Gonçalves Dias?
Weberson Grizoste – Meu primeiro contato com o poeta aconteceu no primeiro ano do Ensino Médio através de um livro didático. Ainda uma vez – adeus foi a primeira poesia que me fascinou – e, na realidade, era o único poema «quase» inteiramente transcrito naquele livro. Na época, eu morava em Vila Bela da Santíssima Trindade, em Mato Grosso, junto à fronteira com a Bolívia e tinha uma amizade paternal com o Sr. João Silva de Moraes, um septuagenário cabo do exército oriundo de Timon e erradicado em Mato Grosso em virtude de sua função. Ele recitava a Canção do Exílio com muito entusiasmo, orgulhava-se de ser maranhense e obviamente este entusiasmo contribuiu para que eu gostasse mais de Gonçalves Dias. Assim, quando entrei para a faculdade, em fevereiro de 2003, decidi que minha monografia seria sobre o poeta maranhense – o que, entretanto, não veio a acontecer. Mas, ao entrar para o mestrado, ao ter contato com os estudos antiépicos acerca de Virgílio percebi que, ali, encaixava-se, muito bem, Gonçalves Dias – e foi assim que produzi uma dissertação de mestrado e uma tese de doutorado acerca das influências que Virgílio exerceu sobre o poeta dos Timbiras.
Região Tocantina – Por que Gonçalves Dias é um autor importante para a literatura brasileira?
Weberson Grizoste – Em primeiro lugar, Gonçalves Dias nasceu em momento propício, quando a nacionalidade brasileira florescia. Aliás, sabe-se muito bem as razões de ele ter nascido fora de Caxias, onde hoje está o município de Aldeias Altas. A diferença de idade entre ele e Dom Pedro II é, de apenas, dois anos. O imperador tornou-se, logo, um símbolo da nacionalidade e isto está interpretado em muitas expressões artísticas – em minha tese de doutorado também falo sobre isto. “Foram de fato dois Gullivers numa terra de liliputianos, ambos morreram fora da pátria”. Considero que a Crítica Literária ainda não compreendeu perfeitamente a dimensão poética e política do poeta. Alguns acusam um certo artificialismo e uma certa idealização na construção poética do sujeito indígena, outros apontam uma suposta originalidade que não encontraremos em José de Alencar e Gonçalves de Magalhães. Na realidade, o Gonçalves Dias dos poemas indianistas conhecia os indígenas brasileiros tanto quanto estes outros conheceram: através dos livros. Dou provas disso: I-Juca Pirama é copiado das experiências de Hans Staden; os timbiras são idênticos às descrições dos cronistas acerca dos tupinambás; a confusão de nomes como Coniã, Mambucaba e Icrá e a ausência de palavras realmente timbiras. Mas, é aqui que reside o encanto da poética indianista: por não ter encontrado pessoalmente estes indígenas, o poeta denominou-se “cantor de um povo extinto”. Cantou a raça que imaginou pelos livros, porque não podia ser diferente. A imagem de Itajuba em Os Timbiras é, contundentemente, a figura de Dom Pedro II, e é a mesma do rei que dorme em Meditação. Gonçalves Dias estava atento para as mazelas políticas, sociais e ao genocídio dos povos indígenas. Felizmente, a parcela de acadêmicos que estão se debruçando sobre estas características está aumentando, ao menos no que se diz respeito ao Meditação. Portanto, a importância de Gonçalves Dias para a literatura brasileira, a meu ver, é que ele é o pai de nossa nacionalidade literária.
Região Tocantina – No ano do seu bicentenário, podemos dizer que Gonçalves Dias continua atual?
Weberson Grizoste – Ouso dizer que, daquela geração de românticos, Gonçalves Dias é o mais atual e continua a ser, talvez, o menos compreendido. A leitura do Meditação impressiona, pois pouco mudamos nestes dois séculos. Tire-se a República e coloque o Império, as oligarquias e o pensamento da elite financeira continua estritamente o mesmo – e a elite intelectual é ignorada nestas instâncias e ainda mais pela população. Alguns valores e crenças descritos em sua poética fazem parte da nossa crença enquanto nação: em nosso hino nacional ressoam versos, tirados da Canção do Exílio; Tabira feito um porco espinho crivado de setas rugindo diante da morte é a fulguração perfeita para o homem que não foge à luta e nem teme a morte. E isto é um paradoxo para a formação da nacionalidade. Quem chora diante da morte acaba amaldiçoado, quem resiste-a torna-se cinzas para sedimento da nação. A maldição que sofre o tupi em I-Juca Pirama é atualíssima, as manchetes ainda dão conta que povos originários ainda têm “suas águas” se tornando em “lago impuro de vermes nojentos” e o céu “como um teto incendiado” e seus entes divinos profanados e ausentes “nos sonhos”. As nossas contradições estão bem descritas em Os Timbiras: somos uma nação que tem por base “os frios ossos da nação senhora | e por cimento a cinza profanada | dos mortos, amassada aos pés de escravos”. Nossas mulheres ainda são sexualizadas e descartadas em virtude de sua miscigenação como ele bem percebeu em Marabá. Aliás, a figura feminina em Gonçalves Dias não é propriamente boa e pode-se apontar facilmente a misoginia. Em sua dramaturgia, por exemplo, Beatriz Cenci, Lucrécia, Bertha, Namry, Leonor de Mendonça e Zoraima são vítimas de interesses masculinos bem variados e ainda não superados na sociedade.
Região Tocantina – O reconhecimento da dimensão de Gonçalves Dias chegou aos estudos acadêmicos?
Weberson Grizoste – Eu diria que, no Brasil, os poetas, de forma geral, são relegados pelos estudos acadêmicos e pelos leitores. Mas, preciso ser cauteloso em advertir que esta minha afirmação é puramente subjetiva e não está calcada em algum estudo de campo. O que observo é que, em termos de literatura, é perceptível que as livrarias vendem muito mais romance que poesia e teatro – e isto tem um reflexo nos estudos acadêmicos. Como já afirmei, acho que Gonçalves Dias não tem sido compreendido em toda a sua dimensão. O poeta dos hinos, abismado diante da natureza, de Deus e da vida; o poeta do Meditação e das dramaturgias não tem o mesmo espaço que tem o poeta dos Timbiras e do amor por Ana Amélia. E aqui reside outra crítica minha. Aqueles que se envolvem com sua poética amorosa conferem um sobrevalor para Ana Amélia que eu mesmo não vejo no poeta para além de meia dúzia de poesias e cartas «somadas». Em boa verdade, a dimensão do I-Juca Pirama e da Canção do Exílio ofusca todo o restante de sua obra e isto é natural em qualquer poeta ou romanista.
Região Tocantina – Para quem quer conhecer Gonçalves Dias, por quais obras você recomenda iniciar?
Weberson Grizoste – Depende do gosto do leitor. Aqueles que estão interessados em uma crítica social e política devem começar pelo Meditação – ouso dizer que não encontraremos no Brasil do século XIX nenhuma obra igual a esta. Quem se interessa pela reflexão das coisas que julgamos importantes na vida deve recorrer à Quadras de minha vida. Quem se interessa pela questão indígena devia começar por examinar o sentimento de um poeta católico presente em Deprecação. Quem deseja conhecer a tristeza e o fascínio pela pátria de um homem exilado deve recorrer à Canção do Exílio. E, se estiver interessado no desespero do amor e no apego à vida, sugiro, Ainda uma vez – adeus ou em algo menos pessoal, mas igualmente profundo, Se se morre de amor! Mas, se quiser tudo isto reunido em um único poema, a meu ver, deve começar por I-Juca Pirama.
Região Tocantina – E por que a “Canção do Exílio” se tornou tão famosa no Brasil?
Weberson Grizoste – Pelas razões que expus acima: Gonçalves Dias é o pai da nacionalidade literária do Brasil. Ele soube entender nossas contradições, nossas crenças e nossos valores enquanto povo. Quero lembrar que, apesar de a frase positivista de Comte adaptada à Bandeira Nacional ser datada de 1848, Gonçalves Dias escrevera no Meditação, em 8 de maio de 1846, que “a ordem e o progresso são inseparáveis”. Nesta ocasião, o poeta também criticou a nação por ser um país de política mesquinha, que não pelejava por amor do progresso – esta que tem sido uma das preocupações da elite intelectual brasileira. A Canção do Exílio, com toda sua simplicidade, com a simplicidade do povo brasileiro, expõe sentimentos e crenças nossas construídos ao longo dos primeiros séculos. O brasileiro crê que nossas terras são mais férteis e mais abençoadas que acolá; que nossos biomas estão mais cheios de toda sorte de vida que qualquer outra parte do mundo. Tudo isto alia-se ao sentimento de exílio e amor à terra bastante arraigado no DNA do povo brasileiro – nossos antepassados vieram para cá na condição de exilados e, certamente, transmitiram-nos estes sentimentos, este medo de morrer longe da pátria.