sexta-feira, 29 de março de 2024

SOBRE A BELEZA E A GRAÇA

Publicado em 24 de março de 2022, às 8:30
Beleza e Graça. Aquarela s/ papel vergê, 21x29,7 cm. @nertanssilvamaia

Como já afirmava o cronista e teórico da arte francês André Félibien (1619-1695), só é verdadeiramente belo aquilo que também é gracioso, ou seja, aquilo que traz em si uma qualidade imperceptível ao mero olhar e impossível de se elucidar por meios artificiais.[1] Isto é assim, porque tal qualidade está fundada na origem mesma de um prazer extraordinário, próprio da multiplicidade e da harmonia das sensações e afetos mais profundos da alma.

Este prazer é distinto do prazer ordinário que se experimenta diante da simples beleza corpórea, pois nem está sob suas regras, nem remete às contingências cotidianas. Ele advém da graça, que é a expressão máxima dos movimentos harmoniosos da alma. É algo livre das afetações sensíveis imediatas e que nos agrada fortuitamente por sua espontaneidade e delicadeza naturais.

Aqui, é possível estabelecer uma diferença fundamental entre as duas mais encantadoras qualidades que movem nossas paixões e desejos, e que também fundamenta o amor e, em certa medida, dá sentido à própria vida: a beleza e a graça. Enquanto a primeira se relaciona às proporções e simetrias dos corpos e das coisas, a segunda é forjada na permanente unidade dos movimentos dos sentimentos e afecções da alma. Se a beleza é dada apenas pela proporção e simetria nas formas corpóreas, esta carece de graça, carecendo, portanto, de verdade e perfectibilidade. Do contrário, caso nessa beleza haja também harmonia com todos os movimentos internos da alma, temos uma beleza graciosa, e assim, verdadeira e perfeita.

Isso se deve à capacidade desses movimentos de não apenas unirem todas as proporções e simetrias dos corpos e coisas na qualidade da beleza, como também animá-las recíproca e harmoniosamente na graça, dando uniformidade e completude ao belo corpo ou à bela coisa.

Quando falamos em perfeição não estamos nos referindo a uma qualidade excludente dos corpos e das coisas que não nos parecem belos à primeira vista, ou que não são considerados belos por padrões estéticos pré-estabelecidos. Pelo contrário, é possível haver perfeição – portanto, beleza e graça – em todo e qualquer corpo ou coisa, sendo eles considerados belos ou não, segundo nossa percepção imediata ou convenções estéticas. O que denota que algo é ou não verdadeiramente belo é a presença da graça, e esta, por sua vez, pode ser expressa tanto por uma bela forma, quanto por uma forma na qual faltam simetria e proporção. Trata-se aqui da beleza espiritual encontrada na diversidade essencial da natureza e no mais puro amor, e não da beleza corpórea ordinária que nos suscita tão somente desejos e paixões.

É o que ocorre, por exemplo, quando julgamos alguém belo, à primeira vista, pela regularidade das partes de seu corpo, atendo-se apenas à sua matéria. Aqui, julgamos somente sua beleza exterior. Porém, quando o julgamos belo pela elegância de seus gestos, pela sensualidade de seus movimentos, por seu sorriso, pelo tom de sua voz, pelas palavras agradáveis que profere, bem como por sua generosidade, dignidade e nobres pensamentos, estamos fazendo segundo sua graça.

Esse mesmo fenômeno ocorre também com as obras de arte. Quando determinada obra não expressa a verdade e a perfeição necessárias para se obter uma arte autêntica, certamente é desprovida de graça. Por outro lado, é possível vislumbrar beleza e graça em obras que aparentemente não seguem à risca os clássicos cânones da arte, mas exprimem toda a graciosidade possível nos elementos que dão vida à sua forma. Isso as torna verdadeiras e perfeitas, mesmo que não atendam completamente às regras de beleza estabelecidas pelo estatuto da arte.

O verdadeiro artista, portanto, é aquele com capacidade de adequar com precisão os elementos de sua obra à bela uniformidade dos movimentos de seu espírito, os quais detêm a verdade e a perfeição de toda a beleza, ou seja, a graça.

O mesmo vale para os juízos que fazemos dos corpos e das coisas quando os consideramos belos ou não. Se nosso espírito é desprovido de graça, não saberemos identificar os atributos da verdadeira beleza, e muito menos aplicá-los em nossos julgamentos. Assim, os juízos de beleza ficam pautados somente na exterioridade dos corpos ou das coisas, e, por isso, destituídos de verdade e perfeição.

Já os espíritos educados sensivelmente pela verdadeira beleza facilmente reconhecem nos corpos e nas coisas os atributos da graça, quando lá eles estão. Nesse sentido, podemos dar, como exemplo, aqueles casos em que duas pessoas se amam e se admiram, ainda que a forma de seus corpos não atenda aos padrões de beleza impostos pela sociedade. Conclui-se daí, que o amor que os une é fomentado pela graça que deles emana e nada tem a ver com suas aparências físicas. Por outro lado, quando determinada união é motivada somente pela beleza exterior, o que há é apenas paixão e desejo.

O fato é que a uniformidade entre beleza e graça forma a obra perfeita, seja no plano da arte, seja no plano da vida. O que une com perfeição e verdade as partes de um corpo e este corpo a sua alma é a graça, responsável por promover a conexão entre a bela simetria corpórea e a harmonia dos movimentos dos sentimentos e afecções do espírito.

Nossa grande dificuldade é perceber a sutileza dessa união e conhecer sua verdade, uma vez que, na maioria dos casos, somos incapazes de sentir o que há de profundo e misterioso nos corpos e nas coisas. Essa incapacidade, em grande parte, é alimentada pela imagem do pensamento racional que esteriliza o todo do sentir em favor do puro pensar. Isso nos impede de exprimir ou de representar plenamente nossos sentimentos e percepções, pelo simples fato de insistirmos na manutenção da velha e ordinária cisão que se estabeleceu entre o sentir e o pensar, ou da subordinação daquele em relação a este. 

Essa cisão ou subordinação só será superada quando educarmos nossos sentimentos na mesma medida em que educamos nosso pensamento. Para tanto é necessário contar com a beleza e com a graça, que juntas dão unidade e reciprocidade a essas duas dimensões humanas, fazendo corpo e alma interligarem-se mutuamente sem constrangimentos. Assim, somente mediante a beleza e a graça será possível formar a totalidade na arte, na vida e no amor.


[1] Cf. FÉLIBIEN, André. Entretiens sur les vies et sur les ouvrages des plus excellens peintres anciens et modernes. Paris: Chez Pierre le Petit, 1666, Premier Entretien, Livre I, chapitre I.

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