quinta-feira, 28 de março de 2024

Nenhuma Safra é Sáfara

Publicado em 25 de janeiro de 2022, às 15:21

Há Poetas que precisam de poucos versos para “agarrar” o leitor pelo pescoço, obrigá-lo a ler o livro inteiro e, depois, embriagado pela beleza dos poemas, sair em busca de outros trabalhos, devorá-los linha a linha e desejar que outros livros sejam publicados. Depois de algum tempo, esse ávido leitor, fisgado pelo brilho das palavras, sente-se tão familiarizado com o poeta, que passa a considerá-lo um amigo, mesmo que talvez os dois nunca tenham se encontrado fisicamente, sentado à mesma mesa de um bar ou trocado cartas, mensagens ou e-mails.

Porém, neste tecido vivo e pulsante denominado por muitos como pós-(para alguns, hiper)modernidade foi criada a categoria de amigos virtuais, aqueles que compartilham, os mesmos ambientes criados pelas ferramentas da internet, comungam de mesmos grupos de aplicativos e acabam admirando-se (isolada ou mutualmente) sem a necessidade de um contato físico, de uma troca de olhares ou de um aperto de mão. São as palavras os elos que unem e irmanam tais pessoas. Essas palavras, que antes habitavam folhas enfeixadas em livros e que hoje podem ser visualizadas em uma tela de computador, de celular ou de qualquer outro dispositivo, podem servir como ponte entre gerações e eternizar imagens que seriam perdidas pelos ecos que abafam o sussurrar da Poesia nesse mundo de correria constante.

Essa é, de algum modo, minha relação de amizade com o poeta Viriato Gaspar, a quem nunca devo ter visto pessoalmente, mas a quem passei a admirar desde os primeiros poemas lidos. Elogiado por intelectuais como Assis Brasil, Arlete Nogueira da Cruz, Nauro Machado e Carlos Cunha, entre outros, Viriato Gaspar é artista da palavra que chegou ao nosso mundo em 1952 e que publicou os seguintes livros: Manhã Portátil (1984), Onipresença (1986), A Lâmina do Grito (1988) e Sáfara Safra (1994). Pelo menos são esses os livros dele que já li. Se houver outros, infelizmente não os tenho em minhas prateleiras.  

A princípio, alguém apressado diria logo: “apenas quatro livros?” Sim. A boa Poesia não se alimenta apenas de quantidade de páginas publicadas. Ela gosta de sentir o sabor de versos bem produzidos e de soluções poéticas que fujam ao convencional. Ritmo, forma e conteúdo são elementos essenciais na conformação de bons textos poéticos. A obra de Viriato Gaspar não nega a seus leitores esses banquetes que animam os olhos, os ouvidos e o intelecto. Ou seja, seus trabalhos apresentam um inquestionável cuidado com a confecção dos versos e das estrofes, articulando cada fonema, sílaba, palavra, verso e estrofe dentro de um conjunto harmônico, que não tem interesse apenas em preencher uma página ou forçar uma rima, mas sim desafiar o leitor para a compreensão daquilo que ficou implícito a partir dos pontos explícitos do texto.

Escritor refinado, Viriato Gaspar é o tipo de poeta que “não abandonou a rima”, como alerta a professora Arlete Nogueira da Cruz, mas que não se deixou escravizar por ela. Ele “tem uma linguagem poética e procura construir seus versos com dignidade”, como alerta a autora de Compasso Binário. Sobre o poeta, o crítico e professor Carlos Cunha comentou que em seus versos “a arte serve para desabafo de emoções contidas no íntimo de cada um de nós”. Opinião essa que também foi compartilhada por Assis Brasil, que reconheceu o domínio da linguagem por parte do autor de Manhã Portátil e se impressionou com o domínio técnico do escritor.

Basta folhear aleatoriamente qualquer um dos livros de Viriato Gaspar para qualquer amante da Poesia perceber as características expostas pelos críticos acima citados. Embora haja predileção pela forma fixa do soneto, nosso Poeta também percorre com desenvoltura outras trilhas poéticas, inclusive aquelas que levam à desconstrução dos versos e o flerte com as vanguardas brasileiras, como o Concretismo, por exemplo, transitando também pelos versos livres e pelos poemas epigramáticos e de ocasião.

Quanto ao conteúdo, são vastas as searas (re)visitadas pelo poeta de Sáfara Safra, mas praticamente todas elas conduzem ao desejo de refletir, questionar e retratar a essência humana. Seus versos conduzem o leitor pelas sinuosas veredas que deságuam em um labirinto cujo passaporte para uma possível saída exige um processo de (re)conhecimento de fragilidades e fortalezas submersas em algum ponto do Ser Humano, já que as artes e as angústias por elas provocadas são essencialmente humanas. A efemeridade da vida, um dos temas mais antigos nas inquietações literárias, tem espaço garantido nas páginas de seus livros, afinal:

a vida é como um trem, repletamente.

na verdade, nós vamos de pingente. (Sáfara Safra, pág. 115)

Como somos entes desconhecidos de nós mesmos, o poeta aproveita seus versos para provocar no leitor um necessário encontro consigo mesmo, como ocorre no poema O Inquilino:

há tanto tempo me habito

que até perdi o endereço.

vizinho, me desconheço,

estranho, sou-me adstrito.

habitante empedernido

do meu próprio estar em mim,

por hábito, me resido,

por vício, me vivo assim:

hospício, quartel, famílio,

um haver-se em precipício. (Sáfara Safra, p. 45)

Como pode ser visto, os poemas de Viriato Gaspar não podem ser creditados apenas à inspiração, mas são também frutos de um constante burilar de palavras em busca do melhor termo para que os impactos sonoros, gráficos e conteudísticos não sejam apenas meros enfeites em um universo de necessidades verdadeiras.

O escritor faz questão de revelar aos leitores suas fontes e suas leituras prediletas. Desse modo, é possível perceber em suas obras suas múltiplas influências, que vão de Fernando Pessoa a Nauro Machado, passando por Augusto dos Anjos, José Chagas, Florbela Espanca, Rimbaud, Paul Verlaine, José Paulo Paes, Ezra Pound e Bashô.

Embora os temas sociais também ocupem algum espaço na poética gaspariana, é possível perceber que há uma preferência por um mergulho existencial no Eu e nas entranhas do Ser, conforme pode ser visto a seguir:

aqui me deponho

como quem depura

cacos de ternura,

bagaços de sonhos. (Onipresença, p. 34)

não era a solidão somente a brisa

de um vento ausente a derramar-se em frio.

tampouco era a manhã, rua imprecisa,

a desmanchar na tarde um céu vazio

mas era a solidão, lua afogada,

por trás de nossos olhos, nossos medos,

e a derreter-se em fogo na calçada.  (A lâmina do grito, p. 23)

Conforme disse antes, não conheço pessoalmente homem Viriato Gaspar, contudo, há mais de duas décadas, convivo com sua Onipresença em forma de palavras escritas nos livros que regularmente leio, seja no nascer do sol em uma manhã portátil, ou nas denúncias diárias que exigem até da lâmina o grito, tenho percebido que nesse escritor maranhense há muitos anos radicado em Brasília nenhuma safra é sáfara, tudo é essência, vida e poesia.

2 respostas

  1. Como sempre, José Neres costura suas ideias e opiniões num tecido crítico com uma coloração capaz de iluminar a mente do leitor. E encantá-lo. E, como fala do trabalho do poeta, parece ele mesmo seguir essa trilha na composição de sua crítica.

  2. Deixo aqui meu maís sincero, carinhoso e fraterno abraço a este grande ser humano, professor e escritor José Neres, agradecendo o carinho da lembrança do meu humilde nome, hoje tão esquecido, como um rabiscaDor de auroras, um pequeno alfaiate de crepúsculos, perdido na vastidão dessa pujante e borbulhante poesia do Maranhão.
    Sempre acreditei que um grande homem embebe e reverbera sua grandeza para seus contemporâneos. José Neres puxa para a altura de sua envergadura humana e intelectual seus pares, os que com ele caminham pela senda inóspita da literatura, sem qualquer receio de perder qualquer mínimo do seu brilho, característica fundamental de quem é cioso e ciente de seu talento e obra. Gratidão fraterna e coração aquecido pela sua lembrança carinhosa. VG

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