sexta-feira, 29 de março de 2024

A beleza está na essência da forma

Publicado em 25 de setembro de 2021, às 19:23
Imagem: Nertan Silva. Aquarela s/ Canson, 21x29,7cm, 2021.

Platão já afirmava no Banquete ser um sinal de insensatez não considerar a beleza uma e a mesma em todos os corpos e coisas. No entanto, ela só é comum a todos os corpos e coisas quando há neles incontestável reflexo da beleza do espírito. Esta última é mais digna que a beleza meramente figurativa, exteriorizada nas formas ordinárias, por ser uniforme, abranger todos os corpos e coisas belos e superar toda e qualquer beleza particular. Trata-se do belo em si, do belo universal, em virtude do qual toda vida vale a pena ser vivida e todo corpo – ou toda coisa – vale a pena ser contemplado e amado. 

Porém, o belo em si só é efetivado na exterioridade quando uma alma razoável possibilita sua livre aparência no viver, no amar e no pensar, segundo a expressão mesma da beleza do espírito. Como nos ensina Cícero, em O Orador, “não há nada, em gênero algum, tão belo que não seja superado em beleza por aquilo de que ele é a expressão”. Assim, nada é tão belo quanto a beleza verdadeira que reside em nosso espírito, lugar por excelência onde ela é infinitamente idealizada em sua máxima perfeição. 

É essa beleza que percebemos nos corpos e nas coisas que julgamos belos mesmo sem compreender, a princípio, a razão pela qual assim os julgamos, nem a natureza do belo que deles emana. Contudo, conforme o pensamento platônico, estes corpos e coisas são como reflexos de um espelho diante do qual está posta a beleza do espírito. Eles apenas carregam, por imitação, essa beleza em suas formas físicas enquanto vivem ou existem. São, portanto, meros suportes para esta beleza, a qual transcende a matéria e está cerrada no espírito da espécie humana desde sempre e para toda a eternidade. 

Enquanto os corpos e as coisas, por mais belos que nos pareçam ou se apresentem a nós, remetem a um estado, a um mero lapso temporal, a beleza do espírito ultrapassa o tempo, pois é eterna. Como nos legou Cícero, a beleza é eterna e independente do mundo material, apesar de ser através deste que ela se manifesta à nossa percepção antes mesmo de a encontrarmos em nosso próprio espírito. 

Portanto, se o todo nos corpos e nas coisas que julgamos belos está contido, necessariamente, nessa beleza una e eterna é porque todas as partes que os compõem são também necessariamente belas, ainda que sejam meras cópias sensíveis do belo Ideal. Numa palavra: estas partes refletem a mesma essência da beleza do espírito. É o caso de uma obra de arte ou de um corpo ou coisa que nos agradam e nos dão prazer estético, mesmo que não consigamos explicar exatamente o porquê de nos satisfazermos diante deles. A obra de arte se torna mais autêntica e aprazível, fazendo assim aparecer o belo Ideal, quanto mais o artista empregue nela toda a determinabilidade da beleza espiritual; do mesmo modo, um corpo ou coisa se tornam belos à nossa percepção, na medida em que aprimoramos nossos sentidos segundo o condão daquela mesma beleza.      

Se a beleza está em um corpo feminino ou masculino – como queiram – e se este corpo nos agrada e nos suscita desejos, qualquer que seja sua forma, é porque no íntimo esta beleza provém da virtude daquele corpo. E, se seus atributos de beleza exterior nos parecem vir da matéria, isso se deve a seu caráter sedutor e persuasivo que sempre ilude nossos sentidos. O fato é que a virtude que aparece nas formas corpóreas belas é a expressão de todo o Bem, isto é, de tudo aquilo que é bom, perfeito e verdadeiro. Algo que, segundo Plotino, em sua Enéadas, se revela somente na pura beleza da alma, na qual se origina o amor verdadeiro e sem a qual toda e qualquer beleza física não passa de um ledo engano. 

Isto posto, os afetos e desejos despertados nos corpos ficam circunscritos ao apelo imediato dos sentidos, enquanto o amor verdadeiro jaz indelével e infinitamente no âmago da alma. Dito de outro modo, aquilo que é belo nos corpos e que nos provoca desejos e paixões é a exteriorização imperfeita – ainda que bela e aprazível aos sentidos – daquilo que o espírito revela na beleza do amor em sua máxima unidade e perfeição. Esta beleza se faz presente desde as partes mais ínfimas de um corpo até a totalidade do belo Ideal que ele pode comportar; desde gestos, olhares e sorrisos delicados que acendem as primeiras centelhas das paixões e desejos, até o mais puro e espiritual amor que nos submete incontornavelmente ao incondicionado. 

Isso pode explicar porque os desejos e paixões nos enganam com toda a sua volúpia e nos parecem ser mais fortes que o próprio amor, ainda que este transcenda todas as veleidades e contingências. Enquanto o amor tem suas raízes na alma e é forjado na pura beleza, os desejos e paixões apenas revestem a matéria com o frágil verniz das vaidades e fazem dos corpos meros simulacros da beleza do espírito. Por isso somos, inadvertidamente, levados a crer que paixões e desejos são suficientes para nos tornar amantes de outrem. Disso resulta a vulgarização do amor – e porque não, a morte do amor!  Só ama verdadeiramente aquele que sobrevive aos caprichos avassaladores e enganadores das paixões. Por outro lado, são as paixões que abrem, na maioria das vezes, as veredas que nos encaminham para o amor. Dialeticamente, o acesso ao amor é aberto pela superação das paixões, e a única forma de superá-las parece ser vivenciá-las. Portanto, essa dualidade paixão-amor deve ser, antes de tudo, harmonizada pela mediação da mais refinada essência da beleza do espírito.  

Por isso, é possível afirmar: a beleza está na essência da forma e não na forma. E somente uma alma bela – como a dos poetas e dos artistas – é capaz de reconhecer a verdadeira beleza refletida nos corpos e nas coisas. Apenas sentidos educados e enobrecidos pelo belo estão aptos para perceber a presença da beleza Ideal em toda e qualquer forma, estando assim, também, finalmente aptos para amá-la verdadeiramente segundo a vontade do espírito. Seja como for, todo amor e toda arte verdadeiros nascem no espírito e são percebidos pelos impulsos sensíveis como desejo de beleza expressos na matéria. Quando nosso olhar ou nosso tato se apaixonam, se aprazem e se deleitam com a beleza dos corpos e das coisas, em verdade estão apenas sendo tocados íntima e misteriosamente pela transcendência e incorporeidade de toda beleza e de todo amor. Algo de difícil apreensão para a maioria das pessoas, o que confirma ser tão raro encontrar o amor verdadeiro entre dois corpos. Por isso, é preciso poesia e arte em todo e qualquer amor para amarmos verdadeiramente.

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